Ao nos depararmos com a palavra "saúde", logo nos vem à mente aquele estado de equilíbrio físico e mental que se contrapõe à condição enfermiça, patológica, desvitalizada. A saúde seria, assim, a antítese da doença; representaria a condição harmônica e integrada, de um ser.
Mas aí, desde logo, cabe a pergunta: de que ser estamos falando?
Somente cada ser individualizado é passível de gozar da saúde ou padecer da doença? Ou o corpo social, enquanto grande ser, também teria estes atributos?
Qualquer um de nós, caso se dê ao trabalho de olhar à sua volta, há de concluir pela segunda hipótese. Desde o nosso primeiro choro até o nosso último suspiro, intercambiamos informações, atividades, emoções, sentimentos, silêncios, risos, choros, pesares e desfrutes com o mundo à nossa volta. E também fazemos chegar ao mundo as nossas omissões, que repercutem, decisivamente, na teia social, como instrumento de manutenção de um “status quo” injusto e, por extensão, violento.
Somos, a um só tempo, mestres e alunos no devir universal, e isto nos torna, de modo inafastável, responsáveis pelo nosso próximo, pela comunidade que nos alberga, pela grande família humana e também pela Natureza, com a qual temos laços indissolúveis.
Portanto, parece inevitável inferir, deste quadro, que não seremos verdadeiramente sãos enquanto, ao nosso lado, se fizerem presentes e atuantes a dor, a violência e o sofrimento, derivados da injustiça. Daí o atualíssimo exemplo de Gandhi: a ação corajosa no amor e pelo amor, preocupada não como a auto-salvação, mas com a salvação de todos.
É interessante observar que a raiz etimológica do vocábulo "saúde" é a mesma da palavra "salvação", a saber: “salutem, salvus”.
Desta forma, ser são é salvar-se; mas não há como se salvar, realmente, sem empreender esforços para a salvação do corpo social que nos abraça. Isto porque, estando, este macro-corpo, enfermo, tal abraço será de morte, não de vida.
Esta salvação, em grande escala, passa pela problemática da justiça, visto que a harmonia social é a expressão do justo. E perpassa, também, o problema da violência, já que, para Gandhi, esta é "qualquer coisa que possa impedir a auto-realização individual, não apenas atrasando o progresso de uma pessoa, mas também a mantendo estagnada. Sob essa perspectiva a violência é violenta porque leva ao retrocesso".
Atraso, estagnação, retrocesso, obstaculização do processo individual como expressões da violência. Vejamos o que dados empíricos acerca de nossa saúde social nos revelam a respeito dela e, após, realizemos um cotejo entre estes números e o pensamento gandhiano:
. O Brasil é o oitavo país em desigualdade social, na frente apenas da latino-americana Guatemala e dos africanos Suazilândia, República Centro-Africana, Serra Leoa, Botsuana, Lesoto e Namíbia, segundo o coeficiente Gini, internacionalmente utilizado para medir a concentração de renda (Folha Online, 07/09/2005);
. Em uma hora, 1,2 mil crianças morrem, por falta de condições materiais, no mundo, o que equivale a três tsunamis por mês (Folha Online, 7/9/2005);
. O globo tem 2,1 bilhões de excluídos sociais. Esta população de excluídos vive em 60 países, que embora concentrem 35,5% da população mundial, detêm, tão somente, 11,1% de toda a riqueza produzida no mundo. Do lado oposto, 871,7 milhões de pessoas, isto é, 14,4% da população global possui 52,1% do PIB mundial, estimado em US$ 45 trilhões (livro "A exclusão no mundo", lançado na 11ª Unctad - Conferência das Nações sobre Comércio e Desenvolvimento);
. Segundo relatório do observador da ONU acerca do Direito à Alimentação, Jean Ziegler, há uma guerra de classes no Brasil, já que, para a ONU, 15 mil mortos por ano são um indicador de guerra, enquanto que, em nosso país, há cerca de 40 mil assassinatos por ano (Folha Online, 18/03/2002);
. O Brasil mantém uma "armadilha da desigualdade", segundo o BIRD (Banco Mundial), isto é, mantém elementos vitais para a perpetuação deste estado de coisas iníquo (Folha Online, 21/09/2005);
. Os conflitos armados, ocorridos no século XX, exterminaram três vezes mais pessoas do que no resto da história humana, totalizando cerca de 111 milhões de mortos.
Este é, pois, o nosso grande corpo social, infectado por diversas moléstias, capitaneadas pelo flagelo maior, o egoísmo, secundado por sua irmã-gêmea, a indiferença. A violência, assim, se consuma, na visão de Gandhi, não apenas pelo ato fisicamente hostil, mas, também, através de qualquer ação ou omissão que impeça a emergência e a consumação das potencialidades tendentes à auto-realização de alguém.
Por este viés e, tendo em vista os dados antes mencionados, a constatação é uma só: vivemos, inequivocamente, em um contexto violento. A violência, que teima em esgarçar o nosso tecido social, se materializa não somente através de tiros de revólver e golpes de faca, mas, sobretudo, pela pressão nefasta que realiza sobre cada um de nós, impedindo-nos de ser, o que podemos ser, ou em concretizar o que, em potência, já somos. E, ao fazer isso, na melhor das hipóteses nos mantém estagnados; na pior, nos faz regredir. A violência nos contém tal qual uma poça, não deixando que a água flua e encontre o Oceano da plenitude e da bem-aventurança. Aprisionada, a água se torna fétida e se conforma em habitar o pântano de nossas dúvidas que, em um perverso processo de retroalimentação, retira de nós o ânimo para agir e modificar as nossas relações e o nosso entorno. A exclusão é o modus operandi da violência no seio social; a violência, por seu turno, é a arquiteta e a força-motriz da exclusão. Uma sociedade que dificulta ou impede a auto-realização dos seus integrantes é, pois, excludente, e, por conseguinte, violenta.
Mas que assim não seja. Tenhamos a imensa coragem dos não violentos, rejeitando, de igual modo, a violência dos violentos e a omissão dos acomodados. De fato, segundo Gandhi, o melhor comportamento numa luta é a não-violência dos bravos, que sobrepuja, qualitativamente, a violência dos bravos e, obviamente, a não violência covarde.
Cultivemos, para mudar o nosso enfermiço corpo social, o maior dos poderes, que, para o Mahatma, é o poder sobre si mesmo, aquilo que pode tornar alguém imune aos que tentam exercer o poder sobre outras pessoas. E, de posse desse poder sobre si mesmo, é necessário agir aqui e agora, enfatizando a consciência e a organização em prol de uma causa justa.
Deve servir de exemplo, para todos nós, o empenho de Gandhi em favor do sarvodaya, vale dizer, a forma social na qual a melhoria do macro-corpo é alcançada, via satyagraha, com a participação de todos.
O satyagraha, que, ao lado do ahimsa - ou não violência - integra a base do pensar e do agir gandhianos, tem sido entendido como "apego incondicional à verdade". Isto porque, quanto à etimologia, o vocábulo deriva de duas palavras sânscritas, quais sejam: sat = verdade, mas, também, ser, e agraha = firmeza.
Em tempos de fundamentalismo, poder-se-ia perguntar: Mas que verdade é esta? E se eu tenho a minha verdade e o outro a dele, não haverá conflito?
Em primeiro lugar, é importante assinalar que, para Gandhi, a palavra "verdade" diz respeito a algo maior do que ditas "verdades" parciais: a verdade é a razão única da existência, pois a verdade é Deus. A verdade não é um mero atributo de Deus; Ele - Deus - é (sat) a verdade. Ora, se sat designa tanto ser, quanto verdade, e se a Verdade é Deus, tem-se que quanto mais verdadeiros somos, mais próximos estamos de Deus. Nas palavras literais do Mahatma "nós somos apenas na medida em que somos verdadeiros".
Deste modo, estar firme na Verdade é estar firme em Deus.
E o conflito, será possível e conveniente extirpá-lo da existência humana?
Cabe, a esta altura, distinguir, o mais claramente possível, conflito, de violência. O conflito tem origem em um mecanismo de sobrevivência presente em todos os seres vivos, uma assertividade em busca da segurança e do impulso para o desenvolvimento. No exercício dessa assertividade, rotineiramente podem surgir desavenças e disputas entre os antagonistas.
Entretanto, não há nenhuma relação necessária, de causa e efeito, entre o conflito e a violência; inexiste uma pulsão biológica que transmude, invariavelmente, o conflito em violência. Esta - a violência - não é um comportamento natural no mundo dos organismos vivos, a não ser como patologia. O conflito, por sua vez, nada tem a ver com matar pessoas por ganância, excluir populações para manter ou aumentar posses ou domínios, negar a alguém condições para que tal pessoa realize as suas potencialidades. O conflito nos oferece a oportunidade de reestruturar a ordem social para a construção de uma sociedade mais humana, sendo, na visão de Gandhi, uma verdadeira dádiva, uma rica oportunidade em potencial para o benefício de todos.
E por que assim é?
Porque, se duas pessoas estão em conflito, isto significa que elas estão em relação e uma relação conflituosa é melhor do que nenhuma relação. De fato, se estão em conflito, têm, elas, algo em comum, um laço, uma ligação, de modo que a incompatibilidade que as une é problema de ambas, não de apenas uma delas. Ora, um problema é um convite à solução e, desta forma, os antagonistas deverão lutar contra o antagonismo, não um contra o outro. Se conseguirem crescer com o conflito, reativarão a unidade fundamental - a condição humana - que os une. De fato, no satyagraha corretamente executado, só há vencedores.
Com efeito, o mal, para Gandhi, está na estrutura, não na pessoa que desempenha o seu papel. E qualquer um que, depois de ter tomado consciência da situação injusta, continuar desempenhando um papel na estrutura violenta, cooperando com ela, estará exercendo a violência, pois sua postura estará propiciando a manutenção desta mesma estrutura geradora de exclusão e sofrimento. Não agir contra esta estrutura também é danoso. Deve-se agir contra a injustiça e a violência, uma vez que sempre há violência estrutural a eliminar e violência direta a prevenir; à luz desta constatação, a passividade é imoral.
Mas, então, segundo Gandhi, como agir, nos conflitos, para não compactuar com uma estrutura iníqua e violenta?
Aja, aqui e agora, estabelecendo, com clareza, metas compatíveis. Veja o conflito como uma oportunidade para transformar a si mesmo e a sociedade. Aja não violentamente, cuidando de não ferir ou causar prejuízo ao seu antagonista, isto é, preserve-o. Não coopere com estruturas geradoras de exclusão social e não se omita diante de um “status quo” injusto. Esteja disposto a sacrificar-se, buscando sempre a transformação humana de si mesmo, de seu oponente e da sociedade. Veja-se como falível e seja generoso na visão do seu antagonista, jamais o coagindo, mas tentando convencê-lo, pela conversão, a abraçar a causa da justiça e da Verdade.
Por fim, que lugar deverão ocupar, neste contexto, as nossas práticas espirituais?
Em Gandhi, duas coisas coincidem: o automelhoramento (alguma espécie de poder sobre si mesmo) e um novo tipo de poder político, lastreado na autoconfiança e na descentralização. A autopurificação liga-se ao autocontrole, que, por sua vez, leva à auto-realização. Uma pessoa que exerça o autodomínio tem a energia mental necessária para, fazendo uso da persuasão, trabalhar eficazmente pelo alcance de uma sociedade melhor, na qual não haja exploração. E mais: se um só homem chegasse à plenitude do Amor, ele neutralizaria o ódio de milhões, já que, segundo Gandhi, o menor gesto de amor é mais forte que o maior gesto de ódio.
O mergulho em nosso íntimo, no mais sacro recanto do nosso ser, que nos é propiciado pelas diversas técnicas de aquietação e de alquimia interior, que as tradições legaram ao mundo, não deve nos remeter a um gozo egoístico de uma suposta bem-aventurança ególatra, mas, ao contrário, nos robustecer para que possamos agir mais valiosamente em nosso meio, visando, sempre, a superação de estruturas sociais injustas e a melhoria de todo o macro-corpo que nos envolve.
Certa vez alguém perguntou a Gandhi por que ele não se retirava para uma caverna, ao que ele respondeu: "Eu trago esta caverna dentro de mim".
Possamos nós, também, sempre ter um porto seguro no coração, a partir do qual nos lancemos, amorosa e sabiamente, ao coração do outro. Estaremos, então – nosso oponente e nós, nosso irmão e nós - construindo o Ramaraj, o Reino de Deus na Terra, aqui e agora.
Roberto de Almeida Gallego
Conferência proferida por Roberto de Almeida Gallego durante o II Fórum de Saúde Social, 24ª Semana Gandhi, auditório da FAU/USP - São Paulo, 30 de setembro de 2005
Mas aí, desde logo, cabe a pergunta: de que ser estamos falando?
Somente cada ser individualizado é passível de gozar da saúde ou padecer da doença? Ou o corpo social, enquanto grande ser, também teria estes atributos?
Qualquer um de nós, caso se dê ao trabalho de olhar à sua volta, há de concluir pela segunda hipótese. Desde o nosso primeiro choro até o nosso último suspiro, intercambiamos informações, atividades, emoções, sentimentos, silêncios, risos, choros, pesares e desfrutes com o mundo à nossa volta. E também fazemos chegar ao mundo as nossas omissões, que repercutem, decisivamente, na teia social, como instrumento de manutenção de um “status quo” injusto e, por extensão, violento.
Somos, a um só tempo, mestres e alunos no devir universal, e isto nos torna, de modo inafastável, responsáveis pelo nosso próximo, pela comunidade que nos alberga, pela grande família humana e também pela Natureza, com a qual temos laços indissolúveis.
Portanto, parece inevitável inferir, deste quadro, que não seremos verdadeiramente sãos enquanto, ao nosso lado, se fizerem presentes e atuantes a dor, a violência e o sofrimento, derivados da injustiça. Daí o atualíssimo exemplo de Gandhi: a ação corajosa no amor e pelo amor, preocupada não como a auto-salvação, mas com a salvação de todos.
É interessante observar que a raiz etimológica do vocábulo "saúde" é a mesma da palavra "salvação", a saber: “salutem, salvus”.
Desta forma, ser são é salvar-se; mas não há como se salvar, realmente, sem empreender esforços para a salvação do corpo social que nos abraça. Isto porque, estando, este macro-corpo, enfermo, tal abraço será de morte, não de vida.
Esta salvação, em grande escala, passa pela problemática da justiça, visto que a harmonia social é a expressão do justo. E perpassa, também, o problema da violência, já que, para Gandhi, esta é "qualquer coisa que possa impedir a auto-realização individual, não apenas atrasando o progresso de uma pessoa, mas também a mantendo estagnada. Sob essa perspectiva a violência é violenta porque leva ao retrocesso".
Atraso, estagnação, retrocesso, obstaculização do processo individual como expressões da violência. Vejamos o que dados empíricos acerca de nossa saúde social nos revelam a respeito dela e, após, realizemos um cotejo entre estes números e o pensamento gandhiano:
. O Brasil é o oitavo país em desigualdade social, na frente apenas da latino-americana Guatemala e dos africanos Suazilândia, República Centro-Africana, Serra Leoa, Botsuana, Lesoto e Namíbia, segundo o coeficiente Gini, internacionalmente utilizado para medir a concentração de renda (Folha Online, 07/09/2005);
. Em uma hora, 1,2 mil crianças morrem, por falta de condições materiais, no mundo, o que equivale a três tsunamis por mês (Folha Online, 7/9/2005);
. O globo tem 2,1 bilhões de excluídos sociais. Esta população de excluídos vive em 60 países, que embora concentrem 35,5% da população mundial, detêm, tão somente, 11,1% de toda a riqueza produzida no mundo. Do lado oposto, 871,7 milhões de pessoas, isto é, 14,4% da população global possui 52,1% do PIB mundial, estimado em US$ 45 trilhões (livro "A exclusão no mundo", lançado na 11ª Unctad - Conferência das Nações sobre Comércio e Desenvolvimento);
. Segundo relatório do observador da ONU acerca do Direito à Alimentação, Jean Ziegler, há uma guerra de classes no Brasil, já que, para a ONU, 15 mil mortos por ano são um indicador de guerra, enquanto que, em nosso país, há cerca de 40 mil assassinatos por ano (Folha Online, 18/03/2002);
. O Brasil mantém uma "armadilha da desigualdade", segundo o BIRD (Banco Mundial), isto é, mantém elementos vitais para a perpetuação deste estado de coisas iníquo (Folha Online, 21/09/2005);
. Os conflitos armados, ocorridos no século XX, exterminaram três vezes mais pessoas do que no resto da história humana, totalizando cerca de 111 milhões de mortos.
Este é, pois, o nosso grande corpo social, infectado por diversas moléstias, capitaneadas pelo flagelo maior, o egoísmo, secundado por sua irmã-gêmea, a indiferença. A violência, assim, se consuma, na visão de Gandhi, não apenas pelo ato fisicamente hostil, mas, também, através de qualquer ação ou omissão que impeça a emergência e a consumação das potencialidades tendentes à auto-realização de alguém.
Por este viés e, tendo em vista os dados antes mencionados, a constatação é uma só: vivemos, inequivocamente, em um contexto violento. A violência, que teima em esgarçar o nosso tecido social, se materializa não somente através de tiros de revólver e golpes de faca, mas, sobretudo, pela pressão nefasta que realiza sobre cada um de nós, impedindo-nos de ser, o que podemos ser, ou em concretizar o que, em potência, já somos. E, ao fazer isso, na melhor das hipóteses nos mantém estagnados; na pior, nos faz regredir. A violência nos contém tal qual uma poça, não deixando que a água flua e encontre o Oceano da plenitude e da bem-aventurança. Aprisionada, a água se torna fétida e se conforma em habitar o pântano de nossas dúvidas que, em um perverso processo de retroalimentação, retira de nós o ânimo para agir e modificar as nossas relações e o nosso entorno. A exclusão é o modus operandi da violência no seio social; a violência, por seu turno, é a arquiteta e a força-motriz da exclusão. Uma sociedade que dificulta ou impede a auto-realização dos seus integrantes é, pois, excludente, e, por conseguinte, violenta.
Mas que assim não seja. Tenhamos a imensa coragem dos não violentos, rejeitando, de igual modo, a violência dos violentos e a omissão dos acomodados. De fato, segundo Gandhi, o melhor comportamento numa luta é a não-violência dos bravos, que sobrepuja, qualitativamente, a violência dos bravos e, obviamente, a não violência covarde.
Cultivemos, para mudar o nosso enfermiço corpo social, o maior dos poderes, que, para o Mahatma, é o poder sobre si mesmo, aquilo que pode tornar alguém imune aos que tentam exercer o poder sobre outras pessoas. E, de posse desse poder sobre si mesmo, é necessário agir aqui e agora, enfatizando a consciência e a organização em prol de uma causa justa.
Deve servir de exemplo, para todos nós, o empenho de Gandhi em favor do sarvodaya, vale dizer, a forma social na qual a melhoria do macro-corpo é alcançada, via satyagraha, com a participação de todos.
O satyagraha, que, ao lado do ahimsa - ou não violência - integra a base do pensar e do agir gandhianos, tem sido entendido como "apego incondicional à verdade". Isto porque, quanto à etimologia, o vocábulo deriva de duas palavras sânscritas, quais sejam: sat = verdade, mas, também, ser, e agraha = firmeza.
Em tempos de fundamentalismo, poder-se-ia perguntar: Mas que verdade é esta? E se eu tenho a minha verdade e o outro a dele, não haverá conflito?
Em primeiro lugar, é importante assinalar que, para Gandhi, a palavra "verdade" diz respeito a algo maior do que ditas "verdades" parciais: a verdade é a razão única da existência, pois a verdade é Deus. A verdade não é um mero atributo de Deus; Ele - Deus - é (sat) a verdade. Ora, se sat designa tanto ser, quanto verdade, e se a Verdade é Deus, tem-se que quanto mais verdadeiros somos, mais próximos estamos de Deus. Nas palavras literais do Mahatma "nós somos apenas na medida em que somos verdadeiros".
Deste modo, estar firme na Verdade é estar firme em Deus.
E o conflito, será possível e conveniente extirpá-lo da existência humana?
Cabe, a esta altura, distinguir, o mais claramente possível, conflito, de violência. O conflito tem origem em um mecanismo de sobrevivência presente em todos os seres vivos, uma assertividade em busca da segurança e do impulso para o desenvolvimento. No exercício dessa assertividade, rotineiramente podem surgir desavenças e disputas entre os antagonistas.
Entretanto, não há nenhuma relação necessária, de causa e efeito, entre o conflito e a violência; inexiste uma pulsão biológica que transmude, invariavelmente, o conflito em violência. Esta - a violência - não é um comportamento natural no mundo dos organismos vivos, a não ser como patologia. O conflito, por sua vez, nada tem a ver com matar pessoas por ganância, excluir populações para manter ou aumentar posses ou domínios, negar a alguém condições para que tal pessoa realize as suas potencialidades. O conflito nos oferece a oportunidade de reestruturar a ordem social para a construção de uma sociedade mais humana, sendo, na visão de Gandhi, uma verdadeira dádiva, uma rica oportunidade em potencial para o benefício de todos.
E por que assim é?
Porque, se duas pessoas estão em conflito, isto significa que elas estão em relação e uma relação conflituosa é melhor do que nenhuma relação. De fato, se estão em conflito, têm, elas, algo em comum, um laço, uma ligação, de modo que a incompatibilidade que as une é problema de ambas, não de apenas uma delas. Ora, um problema é um convite à solução e, desta forma, os antagonistas deverão lutar contra o antagonismo, não um contra o outro. Se conseguirem crescer com o conflito, reativarão a unidade fundamental - a condição humana - que os une. De fato, no satyagraha corretamente executado, só há vencedores.
Com efeito, o mal, para Gandhi, está na estrutura, não na pessoa que desempenha o seu papel. E qualquer um que, depois de ter tomado consciência da situação injusta, continuar desempenhando um papel na estrutura violenta, cooperando com ela, estará exercendo a violência, pois sua postura estará propiciando a manutenção desta mesma estrutura geradora de exclusão e sofrimento. Não agir contra esta estrutura também é danoso. Deve-se agir contra a injustiça e a violência, uma vez que sempre há violência estrutural a eliminar e violência direta a prevenir; à luz desta constatação, a passividade é imoral.
Mas, então, segundo Gandhi, como agir, nos conflitos, para não compactuar com uma estrutura iníqua e violenta?
Aja, aqui e agora, estabelecendo, com clareza, metas compatíveis. Veja o conflito como uma oportunidade para transformar a si mesmo e a sociedade. Aja não violentamente, cuidando de não ferir ou causar prejuízo ao seu antagonista, isto é, preserve-o. Não coopere com estruturas geradoras de exclusão social e não se omita diante de um “status quo” injusto. Esteja disposto a sacrificar-se, buscando sempre a transformação humana de si mesmo, de seu oponente e da sociedade. Veja-se como falível e seja generoso na visão do seu antagonista, jamais o coagindo, mas tentando convencê-lo, pela conversão, a abraçar a causa da justiça e da Verdade.
Por fim, que lugar deverão ocupar, neste contexto, as nossas práticas espirituais?
Em Gandhi, duas coisas coincidem: o automelhoramento (alguma espécie de poder sobre si mesmo) e um novo tipo de poder político, lastreado na autoconfiança e na descentralização. A autopurificação liga-se ao autocontrole, que, por sua vez, leva à auto-realização. Uma pessoa que exerça o autodomínio tem a energia mental necessária para, fazendo uso da persuasão, trabalhar eficazmente pelo alcance de uma sociedade melhor, na qual não haja exploração. E mais: se um só homem chegasse à plenitude do Amor, ele neutralizaria o ódio de milhões, já que, segundo Gandhi, o menor gesto de amor é mais forte que o maior gesto de ódio.
O mergulho em nosso íntimo, no mais sacro recanto do nosso ser, que nos é propiciado pelas diversas técnicas de aquietação e de alquimia interior, que as tradições legaram ao mundo, não deve nos remeter a um gozo egoístico de uma suposta bem-aventurança ególatra, mas, ao contrário, nos robustecer para que possamos agir mais valiosamente em nosso meio, visando, sempre, a superação de estruturas sociais injustas e a melhoria de todo o macro-corpo que nos envolve.
Certa vez alguém perguntou a Gandhi por que ele não se retirava para uma caverna, ao que ele respondeu: "Eu trago esta caverna dentro de mim".
Possamos nós, também, sempre ter um porto seguro no coração, a partir do qual nos lancemos, amorosa e sabiamente, ao coração do outro. Estaremos, então – nosso oponente e nós, nosso irmão e nós - construindo o Ramaraj, o Reino de Deus na Terra, aqui e agora.
II Fórum de Saúde Social, 24ª Semana Gandhi, Auditório da FAU - USP, São Paulo,
30/09/2005.
30/09/2005.
Roberto de Almeida Gallego
Conferência proferida por Roberto de Almeida Gallego durante o II Fórum de Saúde Social, 24ª Semana Gandhi, auditório da FAU/USP - São Paulo, 30 de setembro de 2005
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