domingo, 26 de setembro de 2021

A Pedagogia de Jesus



Por José Herculano Pires

O pensamento pedagógico, orientador dos processos educacionais superiores, resulta da reflexão sobre os problemas da educação. Jesus não era um educador no sentido comum da palavra. Não possuía, como homem, nenhum experiência educativa. Sua profissão era a do pai, segundo a tradição familiar: carpinteiro. Deixando de lado os problemas referentes à sua origem e natureza divinas e encarando humanamente os fatos poderíamos falar numa Pedagogia de Jesus?

A História nos mostra o aparecimento de gênios que superaram por si mesmos as deficiências de sua formação cultural e deram lições aos mestres qualificados. Esse é um capítulo que constitui verdadeiro mistério da Ontogênese, a ciência que trata da formação dos seres. Mas no Espiritismo o problema se esclarece facilmente com a lei da reencarnação. Esta lei nos explica que os espíritos se encarnam em diferentes graus de evolução, o que por sua vez explica as vocações que superam o meio cultural em que nascem certas criaturas e consequentemente resolve o problema da genialidade.

O que revela a existência de um pensamento pedagógico na orientação educacional dada por um mestre não são os seus títulos, são as coordenadas e a estrutura do seu ensino. Toda pedagogia se funda numa filosofia. No caso de Jesus a filosofia básica é a dos Evangelhos. Essa filosofia, que é a própria essência do Cristianismo, fornece a Jesus as diretrizes e dela resulta o reconhecimento, já largamente efetuado no plano pedagógico, de uma verdadeira Pedagogia de Jesus.

Francisco Arroyo, em sua monumental "História Geral da Pedagogia", sustenta o seguinte:

"Com o Cristianismo aparece um novo tipo histórico de educação. –– Jesus é o modelo perfeito do mestre cristão. Clemente de Alexandria chama-o de Pedagogo da Humanidade".

O mesmo autor nos fornece esta breve mas expressiva lista de obras a respeito: "Cristo como mestre e educador, de S. Raue, Berlim, 1902; "Didática de Cristo", Metzler, publicado em Kempton, 1908; "Jesus, educador de seus apóstolos", G. Delbrel, Paris, 1916".

Os historiadores da Educação e da Pedagogia, entre os quais Monroe, Hubert, Luzuriaga, Marrou, Riboulet, Messer, Bonatelli, todos reconhecem a existência de uma Pedagogia de Jesus que deu origem às várias formas da Pedagogia Cristã, nascida, como nota Arroyo, entre as formas pedagógicas da Humanistas latina e da Paidéia grega. Não se trata, pois, de uma novidade ou de um problema controverso, mas de assunto pacífico no campo pedagógico.

 

Fundamentos pedagógicos

Os fundamentos pedagógicos do ensino de Jesus estão na sua concepção do mundo, abrangendo o homem e a vida. Essa cosmovisão se opõe à concepção pagã e à concepção judaica. Jesus, assim, não é apenas um reformador religioso, mas um filósofo na plena acepção da palavra. Ele modifica a visão antiga do mundo e essa modificação atinge a todas as filosofias do tempo, não obstante os pontos de concordância existentes com várias delas. Bastaria isso para nos mostrar, à luz da Ciência da Educação, a legitimidade da tese que inclui Jesus entre os grandes educadores e pedagogos, colocando-o mesmo à frente de todos. Não se trata de uma posição religiosa, mas de uma constatação científica.

A comparação entre a ideia de Deus do Velho Testamento e a ideia de Deus do Novo Testamento mostra-nos a diferença entre o mundo judeu e o mundo cristão. O Deus de Jesus é o pai de todas as criaturas, sem distinção de raças ou posições sociais. Essa paternidade universal determina a fraternidade universal. O Deus-Pai do Evangelho não é vingativo nem irado, não comanda exércitos para destruir povos e nações, mas ama a todos os seus filhos, quer a salvação de todos e a todos concede o seu perdão generoso. Como diria Paulo mais tarde, o tempo da lei e da força fora substituído pelo tempo da graça e do amor.

Os deuses olímpicos, cheios de paixões humanas, e os deuses brutais dos fenícios e dos babilônios, os deuses monstruosos dos egípcios, dos indianos e dos chineses são substituídos pelo Deus-amor e paternal do Evangelho. O próprio Jeová irascível dos judeus, ciumento e vingativo, perde o seu poder sobre o mundo. Os pobres, os doentes, os sofredores, os escravos deixam de ser os condenados dos deuses e passam à categoria de bem-aventurados. A virtude não está mais na bravura e no heroísmo sangrento de gregos e romanos, mas na paciência e no perdão. Dar é melhor do que conquistar, humilhar-se é melhor do que vangloriar-se, responder ao mal com o bem é a regra da verdadeira pureza espiritual. Os mortos não estão mortos, nem mergulhados nas entranhas da terra à espera do juízo final, mas estão mais vivos que os vivos.

Da velha lei judaica não é modificado um só ponto referente ao bom procedimento do homem da Terra, mas tudo o mais é substituído pelo contrário. O culto a Deus é virado pelo avesso: nada mais de sacrifícios materiais, de rituais simbólicos, de privilégios sacerdotais. O único sacrifício é o das más paixões, do orgulho, da arrogância, da cupidez. A vaidade e a ambição devem dar lugar à humildade e à renúncia. A ignomínia da cruz transforma-se em santificação. As pitonisas e os oráculos são substituídos pelas manifestações mediúnicas das reuniões evangélicas, como vemos em Paulo, I Coríntios.

O objetivo da vida humana não é mais a conquista do céu pelo violência, mas a implantação do Reino de Deus na Terra. As riquezas e o poder não são coisas desejáveis e invejáveis, mas fascinações perigosas que podem levar a criatura humana à perdição. As crianças não são desprezíveis, mas as preferidas de Deus, e para nos tornarmos dignos d'Ele temos de nos fazer crianças. Matar os pequeninos, os inocentes, os indefesos não é prova de valentia e de coragem, mas crime aos olhos de Deus.

Não se consegue a salvação pela obediência à lei e pelos rituais do culto (as obras da lei), mas pelo aperfeiçoamento do espírito, pela purificação do coração, pela educação integral da criatura. Por isso é preciso nascer de novo –– não em forma simbólica, mas naquele sentido que Nicodemos não podia compreender: nascer da água e do espírito (a água era o símbolo da matéria, do poder fecundante e gerador), nascer para se redimir, não da desobediência de Adão e Eva, mas dos seus próprios erros, como aconteceu ao cego de Jericó, como sucedera a Elias reencarnado em João Batista.

 

A Pedagogia da esperança

Desses princípios fundamentais resultava logicamente a Pedagogia da Esperança. A educação não era mais o ajustamento do ser aos moldes ditados pelos rabinos do Templo, a imposição de fora para dentro da moral farisaica, mas o despertar das criaturas para Deus através dos estímulos da palavra e do exemplo. A salvação pela graça não era um privilégio de alguns, mas o direito de todos. Jesus ensinava e exemplificava e seus discípulos faziam o mesmo. Chamava as crianças a si para abençoá-las e despertar-lhes, com palavras de amor, os sentimentos mais puros. Nem os apóstolos entenderam aquela atitude estranha: um rabi cheio da sabedoria da Torá perder tempo com as crianças ao invés de ensinar coisas graves aos homens. Mas Jesus lhes disse: "Deixai vir a mim os pequeninos, porque deles é o Reino dos Céus".

Sua condição de mestre é afirmada por ele mesmo: "Vós me chamais mestre e senhor, e dizeis bem, porque eu o sou". Sim, ele é o mestre do Mundo, o senhor dos homens, de todos os homens, sem qualquer distinção. Cada criatura humana é para ele um educando, um aluno, como escreveu o Dr. Sérgio Valle: "matriculado na Escola da Terra". Assim, a Terra não é mais o paraíso dos privilegiados e o inferno dos condenados. É a grande escola em que todos aprendemos, em que todos nos educamos. A Pedagogia da Esperança oferece a todos a oportunidade de salvação, porque a salvação está na educação.

Vejamos este expressivo trecho de Francisco Arroyo em sua "História Geral da Pedagogia":

"Jesus possui todas as qualidades do educador perfeito. Os recursos pedagógicos de que se serve conduzem o educando, com feliz e profunda alegria, à verdade essencial dos seus ensinos. Por isso pode sacudir e despertar a consciência adormecida do seu próprio povo, asfixiado sob o peso excessivo da lei mosaica e da política imperialista da época".

"Os ensinos de Jesus são sempre adaptados aos ouvintes. Ele pronuncia as suas palavras de forma compreensível para todos, sempre nas ocasiões mais oportunas. Recorre frequentemente às imagens e parábolas, dando maior plasticidade às suas ideias".

"A Pedagogia do mestre é também gradual. Não cai jamais em precipitações que possam fazer malograr o aprendizado. Semeia e espera que as sementes germinem e frutifiquem: Tenho ainda muito a vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora".

"Como todo educador genial, Jesus emprega em alto grau a arte de interrogar, de expor, de excitar o interesse dos discípulos. Seus colóquios decorrem sempre num ambiente de incomparável simpatia. É digno, severo, paciente, segundo as circunstâncias e os interlocutores".

Os seus ensinos são claros e intuitivos. Cria figuras literárias e busca exemplos da vida cotidiana para esclarecer o seu pensamento. Aperfeiçoou a forma da parábola e revestiu-a de incomparável esplendor" (Riboulet).

"Seus ensinos têm um toque de autoridade (Eu sou o caminho, a verdade e a vida, todo o poder me foi concedido). Mas exerce com suavidade a sua autoridade.

 

Do livro Pedagogia Espírita, Ed. EDICEL

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

A opinião de Herculano Pires sobre Emmanuel, André Luiz e Chico Xavier

 


Por Leonardo Marmo Moreira

Herculano Pires foi um dos maiores espíritas do Brasil e do mundo, tendo fornecido contribuição inestimável ao movimento espírita. Mais de 36 anos após sua desencarnação, a presença de seu legado e sua importância para o desenvolvimento do trabalho espírita são cada vez mais fortes em nossos estudos doutrinários.

As mais de 80 obras de Herculano Pires desvelam um pensador espírita profundamente engajado na defesa das bases kardequianas e na melhoria do nível doutrinário de nosso movimento espiritista. De fato, os livros e os registros de Herculano como expositor, além dos testemunhos de amigos e familiares, constituem um precioso manancial de estudos doutrinários de grande profundidade, fazendo de Herculano uma referência importante em nossas reflexões e debates sobre os rumos do movimento e as estratégias para que o futuro das tarefas espíritas ocorra com maior qualidade.

Atualmente, um fenômeno interessante tem ocorrido em torno do trabalho e das opiniões de Herculano Pires. Interpretações muito diferentes umas das outras têm aparecido a respeito do trabalho do “Apóstolo de Kardec”, as quais são provenientes de vários confrades, sejam eles admiradores ou não do filósofo espírita de Avaré-SP.

Herculano, de certa forma até surpreendentemente, tem sido, inclusive, associado a interpretações doutrinárias que o colocam como severo e implacável crítico de Chico Xavier e das obras obtidas pela mediunidade xavierina, com especial destaque para os livros dos autores espirituais Emmanuel e André Luiz.

Tal visão é no mínimo altamente polêmica, pois há diversas evidências de que a opinião de Herculano Pires a respeito de Chico, Emmanuel e André Luiz era altamente positiva. Herculano Pires, inclusive, escreveu cinco livros em parceria (coautoria) com Chico Xavier/Espíritos Diversos.

Heloísa Pires, grande expositora e estudiosa do Espiritismo, filha de Herculano Pires, tem oportunidade de afirmar na primeira conferência da série de palestras proferidas em homenagem aos 100 anos do nascimento de Herculano, que Herculano e Chico Xavier tinham muito respeito e admiração um pelo outro. Segundo Heloísa, Herculano podia ter algumas discordâncias sobre tópicos específicos da obra de André Luiz, mas isso seria uma exceção e não uma regra, pois eram bastante afins doutrinariamente na grande maioria dos assuntos.

Essa questão é muito importante, pois discordar de alguns pontos de vista específicos de um determinado pensador, escritor ou palestrante espírita não significa rejeitar a contribuição majoritária do respectivo confrade. A fé raciocinada e o livre-arbítrio fornecem-nos a liberdade de pensar com a própria cabeça e de trabalhar junto daqueles que têm ideais e conteúdos doutrinários afins aos nossos, sem a necessidade de identidade ideológica absoluta.

Aliás, essa suposta identidade total, além de impraticável, seria uma meta perigosa (quase tão perigosa quanto a ausência de um compromisso doutrinário mínimo por parte daqueles que se proclamam espíritas militantes), pois consistiria em uma espécie de uniformização do pensamento, o que acabaria, de uma forma ou de outra, diminuindo o caráter de estudo e de fé raciocinada. Consequentemente, estaríamos fragilizando o aprendizado doutrinário e gerando um comportamento fanático e fanatizante. “A virtude está no meio termo” é uma frase que se aplica perfeitamente como diretriz perante a questão em tela. Nem a busca pela “uniformização doutrinária” de uma forma rígida e inevitavelmente artificial e nem uma irresponsabilidade perante os princípios básicos, o que descaracterizaria o estudo e, consequentemente, a tarefa de elevar a qualidade dos trabalhos espíritas.

Temos constatado diversos estudos e discussões defendendo a tese de que Herculano Pires rejeitava Emmanuel e a linha de pensamento emmanuelino assim como o pensamento de André Luiz e do próprio Chico Xavier. Tal proposta é baseada na ideia de que o trabalho obtido a partir da mediunidade de Chico Xavier teria divergências muito pronunciadas em relação ao pensamento kardequiano, inclusive, no que se refere ao tríplice aspecto da Doutrina Espírita, pois aumentaria a relevância, segundo tais companheiros de forma indébita, do aspecto religioso do Espiritismo.

Herculano Pires no dia 2 de dezembro de 1972 no programa radiofônico intitulado “No Limiar do Amanhã” (elaborado pelo Grupo Espírita “Emmanuel”), o qual foi ao ar de 1971 a 1974, fez ampla análise sobre o pensamento emmanuelino e sobre o próprio Emmanuel, conforme está em registrado no Youtube em post (de 4 minutos e 29 segundos) intitulado “Herculano Pires reforça admiração por Emmanuel e Chico Xavier”.

Vejamos, primeiramente, a pergunta que foi enviada para Herculano Pires:

PERGUNTA DE UM OUVINTE: (...) Continua nosso missivista: ”Assim como o senhor não concorda com tudo o que Emmanuel escreve, eu também tenho o direito de não aceitar essa religião que quer dar ao Espiritismo. Kardec respondeu que o Espiritismo era religioso no sentido filosófico. Eu pergunto ao senhor, que é professor de filosofia: Filosofia é religião? Para nós que não somos nada, filosofia é a ciência da especulação, nunca religião. Pergunto também, professor: Para saber o que é Espiritismo, devemos consultar Conan Doyle ou Allan Kardec?”

Herculano responde tal questão, fazendo afirmativas categóricas em suas análises, as quais estão transcritas a seguir:

RESPOSTA DE HERCULANO PIRES: “Primeiramente, deixe-me fazer aqui uma consideração. O senhor diz assim que “eu (Herculano) não aceito tudo o que vem de Emmanuel ou tudo o que Emmanuel escreve... Quando é que o senhor me ouviu dizer isso? Eu sou um fã de Emmanuel! sou um entusiasta de Emmanuel! Eu apenas discordei de uma opinião do Chico Xavier, no Pinga-Fogo, sobre a questão dos bebês de laboratório. A opinião, ao que parece, era de Emmanuel. Eu discordei daquela opinião. Isto é evidente que nós podemos discordar uma vez ou outra, de uma opinião ou outra, seja de um Espírito, seja de uma pessoa que muito respeitamos aqui na Terra. Mas não quer dizer, e eu não quero que fique parecendo que eu vivo discordando de Emmanuel e que tenho objeções a Emmanuel. Pelo contrário. Tenho mesmo ainda agora um livro publicado conjuntamente com Chico Xavier, que é o livro “Chico Xavier Pede Licença”, em que eu comento numerosas mensagens de Emmanuel, explicando-as e aprovando-as inteiramente. Não nego ao senhor o direito de discordar de alguma coisa. Nós todos temos esse direito. Mas é preciso compreender que esse direito tem uma condição. Nós podemos discordar quando dispomos de elementos suficientes para isso. Discordar apenas por discordar, apenas por opinião pessoal, não tem sentido, quando se trata de uma Doutrina respeitável e profunda que tem por finalidade esclarecer aos homens a respeito dos problemas fundamentais da vida e da morte. Para o senhor discordar, por exemplo, de que o Espiritismo seja religião, o senhor precisa demonstrar com argumentos sólidos e evidentemente bem legítimos... o senhor precisa demonstrar por que o Espiritismo não é religião. Ora, Kardec demonstrou com argumentos poderosos que o Espiritismo é religião! O próprio Kardec fez isso. Dessa maneira, não há motivo para o senhor querer discordar pura e simplesmente desse assunto.

O senhor pergunta se filosofia é religião? Não. Por isso mesmo o Espiritismo se divide em três aspectos. Ele é ciência quando investiga os fenômenos; ele é filosofia quando interpreta os fenômenos; e ele é religião quando aplica o resultado da interpretação filosófica à conduta do homem na Terra e na vida espiritual, conduzindo-o a Deus.

Nas comunicações espíritas por todo o mundo, as manifestações do Espírito Santo estão sempre presentes.”

“Ainda agora a pouco falamos de Emmanuel... Emmanuel é um Espírito santo porque é um Espírito purificado, elevado, e que se coloca a serviço de Jesus na Terra, a serviço de Deus para o esclarecimento das criaturas humanas, para a orientação dos homens. Ele traz a luz para os homens; a luz que é difundida nas suas mensagens, nos seus livros, nos seus ensinos e também nas suas inspirações que ele transmite mentalmente, pessoalmente, diretamente a todas as mentes que se abrem para ele, para a percepção do seu esclarecimento espiritual. Emmanuel, como todos os demais grandes Espíritos evoluídos, elevados, purificados, que se manifestam no meio espírita, representam para nós o Espírito Santo. Da mesma maneira que nas seitas religiosas, as mais diversas, onde houverem corações puros voltados para Deus, o Espírito Santo também se manifestará...”

Diante das afirmativas transcritas acima, que foram enunciadas de forma tão categórica pelo professor Herculano Pires (as quais podem ser ouvidas na voz bastante enfática do próprio Herculano no Youtube), fica difícil colocar o professor J. Herculano Pires como opositor ao pensamento doutrinário de Emmanuel.

Muitos confrades alegam que Herculano era alinhado com Emmanuel no início da sua trajetória no trabalho espírita, mas que com o passar dos anos e o aprofundamento dos estudos acabou tornando-se crítico de Emmanuel. Também é bastante improvável essa hipótese. A resposta de Herculano, transcrita no presente texto, foi enunciada no final de 1972 (2 de dezembro de 1972), em um programa que durou de 1971 a 1974 e Herculano desencarnou no início de 1979 (9 de março de 1979). Portanto, ele teria que apresentar uma drástica mudança de pensamento doutrinário no fim de sua vida física para justificar tão abrupta e radical alteração de opinião. Vale registrar que a obra “Chico Xavier Pede Licença” de autoria de Chico Xavier, Herculano Pires e Espíritos diversos foi o primeiro livro da parceria entre Chico Xavier e Herculano e que foi publicado em 1972. Herculano afirma sobre esse livro: (...) Tenho mesmo ainda agora um livro publicado conjuntamente com Chico Xavier, que é o livro ‘Chico Xavier Pede Licença’, em que eu comento numerosas mensagens de Emmanuel, explicando-as e aprovando-as inteiramente (grifos meus). No ano seguinte, em 1973, Chico e Herculano publicam um segundo livro dessa parceria que é intitulado “Na Era do Espírito”. Em 1974, Chico e Herculano publicam o terceiro e o quarto livro da colaboração entre ambos: “Astronautas do Além” e “Diálogo dos Vivos”. Os quatro livros citados seguem o mesmo estilo de estruturação dos capítulos e nada faz supor que até 1974 Herculano tenha mudado qualquer opinião sobre Emmanuel. Portanto, esse “(...) explicando-as e aprovando-as inteiramente...” muito provavelmente podem também ser estendido ao conteúdo dos livros “Na Era do Espírito” de 1973 e “Astronautas do Além” e “Diálogo dos Vivos” de 1974.

Em 1975, Herculano e Chico Xavier publicam o último livro da parceria entre ambos e que recebeu o nome de “Na hora do Testemunho”. Nesse livro, o triste episódio da adulteração da tradução da obra de Allan Kardec é discutido, sendo que os posicionamentos de Herculano e Chico, em corroboração mútua, são expostos publicamente. Assim sendo, seria algo de altamente excepcional acreditar que nos últimos quatro anos de sua vida, Herculano tenha mudado tão drasticamente de opinião sobre Chico Xavier e Emmanuel, bem como sobre a obra que a admirável dupla proporcionou a nós, encarnados. Se fôssemos admitir tal hipótese, teríamos que dispor de amplo conjunto de evidências da mudança do pensamento de Herculano Pires, que inevitavelmente teriam que contemplar obras escritas e/ou palestras proferidas pelo próprio Herculano. Tais evidências, a priori, não existem, porque, de fato, tal mudança não ocorreu. Não negamos que Herculano pudesse ter discordâncias pontuais sobre a obra de Chico Xavier e Emmanuel, mas daí a caracterizar o pensamento majoritário de Herculano Pires como antagonista ao pensamento majoritário de Chico Xavier e Emmanuel vai uma grande diferença. E essa opinião é o posicionamento do próprio Herculano Pires, pelo menos no finalzinho de 1972, como pode ser notado na passagem a seguir:

“(...) Eu sou um fã de Emmanuel! sou um entusiasta de Emmanuel! Eu apenas discordei de uma opinião do Chico Xavier, no Pinga-Fogo, sobre a questão dos bebês de laboratório. A opinião, ao que parece, era de Emmanuel. Eu discordei daquela opinião. Isto é evidente que nós podemos discordar uma vez ou outra, de uma opinião ou outra, seja de um Espírito, seja de uma pessoa que muito respeitamos aqui na Terra. Mas não quer dizer, e eu não quero que fique parecendo que eu vivo discordando de Emmanuel e que tenho objeções a Emmanuel. Pelo contrário...”.

Será que Herculano mudaria tal radicalmente de opinião em seus últimos anos de vida? Tudo leva a crer que não.

Em um outro vídeo do Youtube denominado “O que pensava Herculano Pires sobre André Luiz?”, também obtido a partir de gravações do mesmo programa de rádio (http://www.herculanopires.org.br/nolimiardoamanhã/194-programa87), Herculano Pires demonstra aprovar o conteúdo das obras de André Luiz e sua coerência com as obras de Allan Kardec. E ainda frisa que comparar André Luiz com Ramatis, como fizera o ouvinte que enviara a respectiva pergunta, era algo inadmissível. Nesse contexto, vale frisar que, em outro vídeo intitulado “Herculano falando sobre cidades espirituais” ((http://www.herculanopires.org.br/nolimiardoamanhã/201-programa92)

Herculano esclarece que, em verdade, André Luiz comenta realidades que já haviam sido desveladas nas bases kardequianas da Codificação Espírita. Herculano, realmente, teria algumas discordâncias em relações a determinadas informações de André Luiz, o que não quer dizer que rejeitasse a majoritária parte de sua obra, como fica evidente na voz do próprio Herculano Pires, no respectivo vídeo do Youtube.

Vale lembrar que a obra de André Luiz é toda ela prefaciada por Emmanuel. Tais prefácios constituem textos de extraordinário valor doutrinário e enfatizam o respeito e até mesmo a admiração que Emmanuel tinha pelo trabalho de André Luiz. Ora, se Herculano registra com tamanha ênfase seu apoio ao pensamento emmanuelino, indiretamente seria de esperar que realmente respeitasse a contribuição de André Luiz, o que, de fato, ocorria.

Por outro lado, Herculano Pires fez críticas ao que ele próprio chamou de “Andreluizismo”, o que é completamente diferente de criticar a obra de André Luiz. De fato, fazer críticas ao Cristianismo não significa, de forma nenhuma, criticar Jesus de Nazaré. Cristianismo é o movimento que foi elaborado pressupostamente baseado nas ideias básicas de Jesus, com seus acertos e erros, coerências e incoerências em relação à essência do pensamento de Jesus. O mesmo acontece com André Luiz, que não pode ser responsabilizado pelas interpretações equivocadas e/ou exageradas que alguns confrades podem formar a respeito de suas obras e da relação de suas obras com a obra de Allan Kardec. Atualmente, é possível encontrar, inclusive, o chamado “Herculanismo”, que consiste em uma leitura radical, e a nosso ver equivocada, dos textos de Herculano Pires, o que obviamente não corresponde necessariamente ao pensamento original de Herculano.

Dentro desse contexto, poderíamos citar um comentário de Divaldo P. Franco efetuado no “Encontro com Dirigentes/Casa Espírita: Problemas e Soluções” no Grupo Espírita Meimei de São Bernardo do Campo em fevereiro de 1990. Divaldo estava analisando determinadas interpretações de certos confrades que questionavam a prática dos passes na casa espírita, pois, segundo esses confrades, tal atividade não estaria respaldada na Codificação, pelo menos não nos moldes nos quais vinham sendo empregados os passes (na opinião desses irmãos, voltamos a afirmar). Divaldo disse, entre outras coisas, que tal procedimento vinha do Evangelho, pois Jesus utilizava desse recurso. E entre outros comentários a respeito da questão do magnetismo/passes e de sua adequação às diretrizes espíritas e ao bom funcionamento do centro espírita, Divaldo comentou que alguns confrades “são mais kardecistas do que Allan Kardec, o que consiste em um grande erro”. De fato, o Codificador não “fechou” questão em diversos tópicos, deixando para que o futuro fosse encarregado de elucidar com mais clareza alguns desdobramentos doutrinários.Ora, se tal cuidado, totalmente coerente com o caráter evolutivo da Doutrina Espírita, valia para o Codificador, e o próprio Allan Kardec estimulava, podemos afirmar que vale ainda mais para todos os demais grandes estudiosos e trabalhadores da Doutrina Espírita, tais como Herculano Pires e o próprio Chico Xavier.

Vale asseverar que as opiniões de Chico Xavier e de Emmanuel sobre Herculano Pires também sempre foram muito elevadas. De fato, Chico afirmava que Emmanuel tinha que dar a autorização para todos os trabalhos de parceria (coautoria) visando à elaboração de livros a partir das mensagens obtidas pela mediunidade de Chico Xavier. Inclusive, em uma mensagem do livro “Na hora do Testemunho”, fica claro que Chico gostaria que mais livros dessa coautoria Chico Xavier/Herculano Pires fossem elaborados. Subentende-se que Emmanuel não permitiria parcerias que não fossem realmente enriquecedoras para os livros da mediunidade de Chico Xavier, principalmente nos moldes nos quais eram feitos os livros da coautoria Chico Xavier/Herculano Pires, com Herculano comentando e explicando as mensagens psicografadas por Chico.

A obra xavierina e a própria trajetória de Chico Xavier, exemplo extraordinário da correlação entre excelência moral pessoal e grandeza da obra produzida, não estiveram isentas de interpretações muito divergentes a respeito da qualidade de seus legados. Tal realidade de discrepância acentuou após a desencarnação de Chico Xavier, o que também aconteceu com Herculano Pires em relação à sua respectiva obra pessoal.

A liberdade de pensamento e a fé raciocinada são pontos de honra da Doutrina Espírita. Mas tais conquistas não são facilmente administradas. Temos um alto preço a pagar por essa conquista, a partir de uma Doutrina que depende de elevada maturidade intelecto-moral-espiritual, que nem sempre demonstramos possuir. É uma tendência bastante comum e justificável utilizar de nomes respeitáveis como referência para a construção de nossos raciocínios e argumentações. No entanto, principalmente em relação àqueles que não estão mais encarnados, devemos ter um cuidado maior na interpretação de seus escritos e exposições orais. Tal medida é fundamental para que não corramos o sério risco de extrapolar demasiadamente as interpretações dos textos dos respectivos autores, podendo chegar, até mesmo, a distorcer o pensamento daqueles a quem mais respeitamos e admiramos em termos da divulgação da Verdade Libertadora.

 

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