Durante a viagem de Durban a Pretória* (onde devia advogar), sofreu um ultraje que orientaria o curso de sua vida. Ele viajava, naturalmente, na primeira classe. Na estação de Pietermaritzburg, capital do Natal, um viajante branco entrou às nove da noite no compartimento onde Gandhi estava e se indispôs por lá encontrar um “homem de cor”. Alguns minutos mais tarde, Gandhi recebeu ordens de deixar o compartimento (“Acompanhe-me, seu lugar é em outro vagão), o que ele recusou com firmeza, como de hábito. E a lei o colocou, sem mais cerimônia, na plataforma da estação. Pietermaritzburg situava-se numa altitude elevada, era inverno, fazia muito frio na escura sala de espera. Gandhi estava sem seu sobretudo, deixado com as valises na sala do chefe da estação. Tritou de frio a noite toda.
Durante essa noite de espera, de frio, de humilhação, quando se viu atingido em seu corpo, colocado sobre a linha estreita que separa a resignação do engajamento, ele tomou uma decisão: “O tratamento injusto que me infligiam era apenas superficial: puro sintoma do mal-estar profundo que o preconceito social alimentava. Era preciso tentar, se possível, extirpar o mal, mesmo nos expondo a sofrer injustiças durante o caminho”.
Ele evitava assim o ressentimento pessoal ao analisar a causa de um mal que ultrapassava em muito sua pessoa. Para além da ofensa e do ofensor, percebia o doutrinamento de que este último era o objeto. E transformava suas próprias reações imediatas em vontade de ação: daí em diante combateria esse mal atacando não os sintomas (dos quais essa afronta fazia parte), mas as origens. É provável que, nessa noite em Pietermaritzburg, Gandhi tenha sentido nascer a vocação de reformador.
Se até então ele se fizera notar mais por sua timidez e sua atitude reservada, escreve Nanda, seu biografo,
...na sala de espera desolada da estação de Pietermaritzburg, enquanto o insulto ainda ardia, uma força de aço penetrou sua alma. Retrospectivamente, o incidente lhe pareceu uma das experiências mais criativas de sua vida. A partir de então, recusou aceitar a injustiça como fazendo parte da ordem das coisas... ele nunca seria uma vítima anuente da arrogância racial. Dali em diante, o sentimento de inferioridade que o perseguira como estudante na Inglaterra e depois como jovem advogado na Índia apagou-se.
Logo a seguir as coisas foram de mal a pior e a decisão de Gandhi foi submetida a uma dura prova. Pela primeira vez em sua vida de adulto, ele foi espancado. De Charlestown a Johannesburg – um trajeto que o trem não fazia – era preciso tomar a diligência. “Os viajantes deviam tomar seu lugar no interior do veículo; mas, como eu era visto como um “coolie”... o “chefe” julgou que não convinha me colocar com os passageiros europeus.” O jovem Gandhi permaneceu assim no exterior. Na primeira parada, o “chefe”, tomando o lugar que ele ocupara, indicou-lhe um velho pano imundo colocado sobre o estribo e disse a Gandhi que ficasse ali: “Senta aí, sami; quero ficar ao lado do cocheiro”. O momento seguinte: um agravamento do insulto. Pois Gandhi, obviamente fiel à sua idéia de dignidade, devia recusar. Pronunciou mesmo um discurso reivindicando seu direito de sentar-se no interior. “Enquanto eu fazia bem ou mal esse discurso, ele saltou sobre mim e me aplicou várias bofetadas com todas as suas forças... Eu me agarrava à balaustrada... decidido a não ceder... Os viajantes assistiam ao espetáculo: o homem me ofendendo, me empurrando e me batendo, e eu não reagindo...”
Convém precisar que o homem era vigoroso, que Gandhi era franzino e que os viajantes, compadecidos, acabaram por se comover: uma cena anunciadora de muitas outras, mais graves e dolorosas ainda, pois a morte estava sempre no horizonte durante os satyagraha* organizados por Gandhi. “Era uma cena clássica; a coragem tranqüila e a dignidade humana diante da arrogância racista e da força brutal”.
Christine Jordis
*Durban e Pretória (África do Sul)
*Satyagraha: literalmente, “firmeza na verdade”. Nome dado por Gandhi à resistência não-violenta.
Trecho da Biografia de Gandhi, de Christine Jordis (A África do Sul 1893-1914).
Durante essa noite de espera, de frio, de humilhação, quando se viu atingido em seu corpo, colocado sobre a linha estreita que separa a resignação do engajamento, ele tomou uma decisão: “O tratamento injusto que me infligiam era apenas superficial: puro sintoma do mal-estar profundo que o preconceito social alimentava. Era preciso tentar, se possível, extirpar o mal, mesmo nos expondo a sofrer injustiças durante o caminho”.
Ele evitava assim o ressentimento pessoal ao analisar a causa de um mal que ultrapassava em muito sua pessoa. Para além da ofensa e do ofensor, percebia o doutrinamento de que este último era o objeto. E transformava suas próprias reações imediatas em vontade de ação: daí em diante combateria esse mal atacando não os sintomas (dos quais essa afronta fazia parte), mas as origens. É provável que, nessa noite em Pietermaritzburg, Gandhi tenha sentido nascer a vocação de reformador.
Se até então ele se fizera notar mais por sua timidez e sua atitude reservada, escreve Nanda, seu biografo,
...na sala de espera desolada da estação de Pietermaritzburg, enquanto o insulto ainda ardia, uma força de aço penetrou sua alma. Retrospectivamente, o incidente lhe pareceu uma das experiências mais criativas de sua vida. A partir de então, recusou aceitar a injustiça como fazendo parte da ordem das coisas... ele nunca seria uma vítima anuente da arrogância racial. Dali em diante, o sentimento de inferioridade que o perseguira como estudante na Inglaterra e depois como jovem advogado na Índia apagou-se.
Logo a seguir as coisas foram de mal a pior e a decisão de Gandhi foi submetida a uma dura prova. Pela primeira vez em sua vida de adulto, ele foi espancado. De Charlestown a Johannesburg – um trajeto que o trem não fazia – era preciso tomar a diligência. “Os viajantes deviam tomar seu lugar no interior do veículo; mas, como eu era visto como um “coolie”... o “chefe” julgou que não convinha me colocar com os passageiros europeus.” O jovem Gandhi permaneceu assim no exterior. Na primeira parada, o “chefe”, tomando o lugar que ele ocupara, indicou-lhe um velho pano imundo colocado sobre o estribo e disse a Gandhi que ficasse ali: “Senta aí, sami; quero ficar ao lado do cocheiro”. O momento seguinte: um agravamento do insulto. Pois Gandhi, obviamente fiel à sua idéia de dignidade, devia recusar. Pronunciou mesmo um discurso reivindicando seu direito de sentar-se no interior. “Enquanto eu fazia bem ou mal esse discurso, ele saltou sobre mim e me aplicou várias bofetadas com todas as suas forças... Eu me agarrava à balaustrada... decidido a não ceder... Os viajantes assistiam ao espetáculo: o homem me ofendendo, me empurrando e me batendo, e eu não reagindo...”
Convém precisar que o homem era vigoroso, que Gandhi era franzino e que os viajantes, compadecidos, acabaram por se comover: uma cena anunciadora de muitas outras, mais graves e dolorosas ainda, pois a morte estava sempre no horizonte durante os satyagraha* organizados por Gandhi. “Era uma cena clássica; a coragem tranqüila e a dignidade humana diante da arrogância racista e da força brutal”.
Christine Jordis
*Durban e Pretória (África do Sul)
*Satyagraha: literalmente, “firmeza na verdade”. Nome dado por Gandhi à resistência não-violenta.
Trecho da Biografia de Gandhi, de Christine Jordis (A África do Sul 1893-1914).
Nenhum comentário:
Postar um comentário