segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A Filosofia de Jesus


O Espiritismo tem na pessoa de Jesus o ideal e exemplo de desenvolvimento máximo do Espírito. As demais denominações cristãs o têm como Deus-Filho, pessoa da Trindade Divina. Os estudiosos dedicados a uma análise histórico-crítica do Novo Testamento, nem sempre movidos por compromissos de fé, tomam-no por seu papel social, não ignorando, porém, os seus dotes e capacidades singulares. Islâmicos consideram-no um dos mais importantes profetas; budistas e hinduístas diversos já se pronunciaram sobre Ele como um grande iluminado, guru e mesmo um ser divino. Qualquer que seja a perspectiva adotada, seria preciso desconsiderar completamente o relato dos Evangelhos para desprezar ou mesmo reduzir ao plano de pensador comum a figura de Jesus. Faz sentido, portanto, supor que um ser tão universalmente admirado e respeitado pelo seu ensino, a ponto de influenciar sobremaneira a cultura ocidental, com reflexos sobre outras, tenha uma filosofia própria.

Tratar da filosofia de Jesus, no entanto, continua a ser um trabalho extremamente ingrato, porque paradoxalmente este complexo e inesgotável pensador é tido pela maior parte da tradição filosófica como revelador religioso apenas, ao qual não se aplicariam as categorias do discurso filosófico. Ainda que esta conclusão absurda tenha sido contestada por inúmeros nomes ilustres, a concepção vulgar, incluindo a cultura acadêmica, repete os papéis estereotipados atribuídos pelos teólogos mais ortodoxos, sejam os católicos ou protestantes, de Cristo e dos apóstolos em seus papéis dogmáticos.

Estranhamente, o pensador que orienta toda a ética, metafísica e psicologia do Ocidente, especialmente querido pelos racionalistas de todos os tempos, teve a sua profundidade filosófica pervertida pelas disputas clericais iniciadas pouco após a sua morte. E com isso não quero me referir aos pontos em que evidentemente Jesus possui ascendência absoluta sobre o pensamento humano, tais como a questão da imortalidade, da ética, da dignidade humana, da Teologia, do autoconhecimento etc. Prefiro levantar um dos problemas mais graves da Metafísica e da Ontologia, em que suas ideias tão frutíferas continuam a oferecer ilimitados contributos, sem que sejam ainda reconhecidas.

Um daqueles pontos nos quais a razão parece estar em conflito consigo mesma, para reproduzir a feliz expressão de Kant, é o conflito entre livre-arbítrio e determinismo. Questão que deve a sua formatação moderna, senão a sua essência, aos problemas e soluções levantados pelo pensamento de Jesus. Em nenhum outro pensador os dois elementos se achavam tão presentes, tão harmoniosamente unificados, de modo que se qualquer outra influência tivesse sido determinante nesta questão, a filosofia deveria ter pendido para um dos dois. Se estoicos ou epicuristas tivessem prevalecido na orientação da tradição europeia, tenderíamos para o determinismo.

Se o platonismo ou o aristotelismo tivessem prevalecido, seríamos excessivamente confiantes no nosso poder. A síntese de Jesus equilibrou de tal modo esta questão que o conflito passou a ser insolúvel ou marcado pela igualdade complementar das duas forças, correspondendo esta última variante ao que se produziu de mais elevado na Filosofia e Teologia humanas.

A defesa que Jesus faz do livre-arbítrio transcende todas as categorias segundo as quais se havia julgado o poder do homem, elevando-o às alturas da divindade, fazendo dele até então visto como animal ou, na melhor das hipóteses, cidadão, o herdeiro do Deus único e absoluto. É tão grande a liberdade, na concepção de Jesus, que a fé do homem pode transportar montanhas, e todas as forças de sua alma estão sob o seu controle.

A fé, aliás, é exaltada sem qualquer restrição, pois “tudo o que for pedido com fé, será obtido”, e o rabi galileu atribuía as curas e milagres à fé dos requerentes, lembrando-lhes que “fora feito segundo a sua fé”. Em nenhum momento Jesus diz aos discípulos que eles são incapazes de repetir os seus feitos por ausência de talento ou habilidade, mas garante-lhes, ao contrário, que nada lhes é impossível e os repreende sempre por não terem a fé suficiente para tal ensejo.

Quanto ao patrimônio íntimo, Jesus inovava colocando todos os sentimentos e pensamentos sob a tutela da consciência. Enquanto a ética lidava até então com atos, Jesus ressalta a liberdade de consciência, estendendo a nossa responsabilidade aos “pecados cometidos em pensamento”. Recomendando a vigilância, estava Ele afirmando a necessidade de regrar as emoções e ideias. Transformando o amor em mandamento, contrariou completamente a ideia de um amor passional ou fruto de inclinação, gosto, tendência, e lançou as bases ainda incompreendidas da reforma emocional. Ao ensinar o amor a Deus e ao próximo, como mandamento maior, assegura-nos de que qualquer pessoa tem o governo de seus sentimentos, sendo responsável pela amargura, aridez ou floração interior. Pregou a verdade que liberta e afirmou que os homens andavam até então como escravos de seus pecados, estando libertos a partir daquele momento pela revelação de que o Espírito é senhor de seu destino, a par de todos os hábitos, costumes, instintos, atavismos e compromissos sociais.

Ao mesmo tempo e sem diminuir em nada esta prerrogativa de liberdade, Jesus apresentou uma visão da Providência tão absoluta, onipotente e imanente a todos os fenômenos da Criação que mesmo os judeus se espantavam com a sua convicção de que todas as coisas são determinadas por Deus. Recomendou a resignação incondicional às agruras da vida e às provações enviadas pela divindade. Apontou Deus como o Pai e Senhor da vida, em cujas mãos devemos nos depositar com desassombro, sem preocuparmo-nos com o dia de amanhã. Reuniu no sublime Sermão da Montanha as condições da iluminação com destaque para a entrega, abnegação e confiança na direção que Deus oferece ao mundo, dando a entender que o futuro está em suas mãos. Orou sempre a Deus para que tudo transcorresse conforme a sua vontade. Baseou a própria grandeza na destruição da vontade pessoal e na submissão à vontade do Pai, apresentando-se assim como revelação máxima de Deus, na exata medida em que não reconhecia ser nada fora dele.

Essa doutrina de implicações oceânicas gera, há dois mil anos, um estarrecimento da razão. Os que a aceitaram de modo humilde encontraram nela a serenidade e a consolação do determinismo divino e a responsabilidade e grandeza da liberdade individual. Os muitos que tentaram entendê-la reduziram-na às próprias limitações e enfatizaram os polos correspondentes às suas preferências.

Santo Agostinho concentrou-se na ideia de Deus, depositando nele, causa de tudo, a decisão sobre a salvação humana, e deixando ao livre-arbítrio apenas a decisão entre aceitar ou não a eleição. Pelágio, enfocando a divindade e responsabilidade do indivíduo, colocou nas mãos do homem a salvação ou queda, confrontando a ideia de Agostinho sobre a eleição pela graça de Deus e estabelecendo a necessidade de obras para a elevação do Espírito. Graças ao poder político do bispo de Hipona, Pelágio foi fortemente perseguido e julgado como herege, pesando sobre os ombros do santo africano a responsabilidade pelo desequilíbrio filosófico e doutrinário do Cristianismo.

Lutero e Erasmo, o reformista protestante e o católico, respectivamente, repetiram a mesma disputa mais de mil anos depois, dando sinais de que a Humanidade pouco evoluiu na interpretação da filosofia de Jesus. Enquanto Lutero condenou o livre-arbítrio em seu livro De servo arbítrio (Sobre o arbítrio escravo), Erasmo o exaltou em seu livro-resposta De libero arbítrio (Sobre o livre-arbítrio). Lutero acreditava que a única coisa em poder do homem é a sua entrega à fé. Se o fizesse, o homem converter-se-ia por força do poder de Cristo, e a fé revelada o transformaria. As boas obras seriam mera consequência dessa conversão. Erasmo, racionalista e liberal, rebatia que havia muitas interpretações conflitantes sobre as Escrituras, e que era impossível distinguir com certeza a fé correta da equivocada, a aparente da sincera, e que por isso a razão deveria fiscalizar a fé, e o homem deveria manter o seu livre-arbítrio e juízo crítico, embora aceitando a orientação das Escrituras. Erasmo também enxergava passagens em que Jesus sugere o livre-arbítrio, e por isso concluía que, na dúvida, o homem deveria agir como se a salvação dependesse de suas obras, esforçando-se por si mesmo como se não estivesse salvo, ao invés de entregar-se à ideia dogmática de estar garantido pela fé.

Ainda outras vezes a história da Teologia e da Filosofia polarizou-se numa dicotomia do pensamento de Jesus, em detrimento da completude magnífica que a sua síntese harmônica oferecia. Mas conquanto essas diástoles do pensamento tenham provocado contendas, foi também importante para o exercício do raciocínio que essas divisões didáticas e simplificadoras da dialética cristã ocorressem. Se ao menos conseguirmos aprender com este processo de evolução histórica, poderemos evitar a continuidade dessa cisão, e reconstituir a metafísica de Jesus em sua potência integradora original, onde livre-arbítrio e Providência implicam-se mutuamente, ao invés de se contradizerem.

Humberto Schubert Coelho

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