quarta-feira, 3 de junho de 2020

Momento de Transformação (Visão Religiosa Ampla)


A fé explica: as respostas das religiões sobre a pandemia do coronavírus

Por: Aline Nunes

Para muitas denominações religiosas, o momento atual é de sofrimento, mas também serve para reflexões e mudanças

O impacto provocado pela pandemia do novo coronavírus não escolhe cor, gênero, classe social ou religião. Para muitos dos que alimentam alguma crença, inclusive, a crise na saúde era fato previsto e requer, bem mais do que o distanciamento social recomendado pelas autoridades sanitárias, reflexão e disposição para mudanças.

Do judaísmo ao cristianismo, passando pelo budismo e religiões de matriz africana, há uma compreensão de que, ao mesmo tempo em que provoca sofrimento, o momento atual também pode contribuir para a evolução das pessoas.

"A maioria absoluta das igrejas entende que estão se cumprindo previsões bíblicas, no que diz respeito aos princípios de dores relatados (Mateus, capítulo 24). São dias difíceis"Enoque de Castro Pereira, Presidente da Associação de Pastores Evangélicos da Grande Vitória

Para superar as adversidades, o pastor Enoque ressalta que os fiéis são orientados a buscar mais a Deus. “Como no exemplo de Paulo, quando uma víbora venenosa o mordeu e mal algum lhe fez, pois, pela fé, vencemos qualquer obstáculo”, acrescenta, com mais uma citação das Escrituras.

Na leitura da Torá, os judeus também encontram respostas para os desafios da atualidade. “Muitos dos fatos que aprendemos nas leituras semanais conferem maior credibilidade às informações de nossos antepassados, de conceitos religiosos e espirituais, e fortalecem nossa fé. Um dos eventos que aconteceriam antes da vinda do Messias era exatamente uma pandemia como a de agora. Outro é a invasão de cidades por animais selvagens, coisa que está ocorrendo na Europa”, sinaliza o presidente da Congregação Israelita Capixaba (Cicapi), Alfredo Silbermam.

NECESSIDADE DE MUDANÇA

Presidente da Federação Espírita do Estado do Espírito Santo (FEEES), Fabiano Santos conta que, em um dos livros das obras básicas do Espiritismo (publicado pela primeira vez no século XIX), Allan Kardec, codificador da doutrina, relatava períodos como o atual.

"Um momento que, para nós, é excepcional, mas não tem nada de excepcionalidade. É uma transição planetária. A Terra está classificada num processo para um mundo de regeneração. Então, esses flagelos destruidores, como as grandes catástrofes ou a pandemia, servem para mudança. No último livro da codificação diz que os tempos são chegados, e Kardec fala sobre essa necessidade de mudança, como se fosse uma purificação"Fabiano Santos, Presidente da Federação Espírita do Estado do Espírito Santo (FEEES)

Santos vai além de sua crença religiosa para demonstrar as fragilidades dos novos tempos. Ele cita o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman e sua teoria a respeito da modernidade líquida, de que nada hoje foi feito para durar.

A sociedade, constata Santos, está ligada ao consumismo de maneira exacerbada e transformou-se na “geração selfie”, muito mais preocupada consigo. “Isso faz com que nos tornemos menos empáticos, mais egoístas e orgulhosos. O que ocorre agora é uma parada em que temos a oportunidade de estar conosco mesmo e de refletir.”

O médium Luiz Augusto Labuto, representante legal da Fraternidade Tabajara que reúne praticantes da umbanda, lembra que, em 1984, ele e outros médiuns no país receberam uma mensagem espiritual em que se revelava a necessidade de a humanidade mudar de nível e, para tal, haveria um intervalo de 50 anos.

“De planeta de expiação para planeta de regeneração. Esse prazo terminará em 2034. Daqui a 14 anos não permanecerão na Terra aqueles que não buscam se regenerar. Essa pandemia, outras formas de doenças, tsunamis e outros vêm surgindo para despertar em todos a vontade de se regenerar e de evoluir espiritualmente”, pontua.

Recém-chegado de volta ao Espírito Santo, após dedicar-se à vocação religiosa em outros Estados, o frei Luiz Flávio Adami Loureiro atua hoje no Convento da Penha e também vê a humanidade em um momento bastante difícil, de egoísmo e vaidade.

“O ser humano não está se respeitando, nem à natureza. Essa pandemia serve para cada um reavaliar como está vivendo nos dias de hoje. Não é só o ter, o poder e o prazer que resolvem. A vida é mais que isso”, sustenta o frei que, durante o Oitavário deste ano, com o Convento praticamente vazio devido às medidas de isolamento social, fez suas orações do alto da pedra voltado para Vitória.

“Pedi que sumisse essa doença, que tivesse uma cura, que essas dificuldades acabassem. O mundo todo sofre; é o povo de Deus que sofre por isso”, completa.

Doutor em Ciência da Religião, o professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Edebrande Cavalieri observa que, ao longo da história, a pandemia da Covid-19 não é a primeira a ser enfrentada, tampouco o elevado número de mortes. Nesse contexto, muitas religiões demonstram uma preocupação grande em cuidar, acompanhar e orientar.

“A igreja acabou se tornando um espaço de solidariedade e de caridade, fora o cuidado espiritual. No momento em que as pessoas se defrontam com um limite muito forte, com a falta de horizonte e a insegurança, a religião, através da fé, é a sustentação para muitas fazerem a travessia nessa pandemia”, afirma Cavalieri, reforçando que, para quem crê, fica menos difícil o enfrentamento.

Assim, mesmo com as restrições de encontros presenciais para controlar a disseminação da doença, as religiões buscam alternativas para se manterem próximas de seus seguidores.

"Estamos procurando dar assistência religiosa aos fiéis com transmissão de missas e outros atos devocionais, como novenas, terço e orações. Na medida das solicitações, os padres que estão fora dos grupos de risco atendem fiéis que solicitam unção. Mantemos a confiança em Deus e a esperança"Dom Dario Campos, Arcebispo metropolitano de Vitória

Alfredo Silbermam destaca o fortalecimento da rede de apoio da comunidade judaica por meio dos encontros virtuais. “Apesar de distantes, permanecemos conectados, até por mais tempo, participando de eventos religiosos e culturais, inclusive em contato com outros Estados e países. Abrimos uma sinagoga em cada casa”, valoriza.

Ana Braga de Lacerda, coordenadora de um templo de budismo tibetano em Vitória, diz que as orientações e o suporte espiritual também são compartilhados pela internet, inclusive com transmissões ao vivo.

“Num tempo de normalidade, valorizamos muito a prática coletiva porque o encontro potencializa orações e possibilita ter mais trocas. Isso é muito importante. Mas ser virtual não representa uma diminuição das práticas de reflexão, leitura, oração. Fazemos, por exemplo, orações para a eliminação de obstáculos com a intenção de beneficiar todos os seres. Mesmo não sendo presencial, não deixa de ser coletivo”, explica.

Para auxiliar as casas espíritas, que têm autonomia para definir como vão conduzir seu atendimento nesse período de pandemia, a Federação publicou duas cartilhas orientando sobre o trabalho online e o uso das ferramentas disponíveis.

“A gente ensina como fazer live, palestra pública, atendimento online, como conduzir as reuniões de evangelização”, relaciona Fabiano Santos, presidente da entidade.

Para Edebrande Cavalieri, o sentido de religião passa, em boa medida, por essa atitude de acolhimento nos tempos difíceis, mas que não é praticado por todas as lideranças. “Nesta pandemia, algo que acho perverso é ver alguns líderes que deixam transparecer maior preocupação com os templos vazios em função da ausência da contribuição do dízimo, do que com a vida dos fiéis”, lamenta.

PÓS-PANDEMIA

Cavalieri também se mostra cético com a mudança de conduta esperada no pós-pandemia. Para ele, a crise sanitária não deverá tornar homens e mulheres mais virtuosos. Se assim fosse, em outros momentos da história de muito sofrimento, como depois das grandes guerras, haveria um novo comportamento humano.

O professor acredita em atos solidários, que continuarão imprescindíveis, e diz não ver só o lado negativo das pessoas, mas supõe ser uma utopia pensar em uma revolução da consciência, uma conversão mundial diante da tragédia diária provocada pelo coronavírus.

Para os mais tradicionais do judaísmo, o mundo não mais voltará a ser como conhecido antes da pandemia, segundo afirma Alfredo Silbermam, mas a expectativa é de que as relações humanas sejam mais valorizadas.

Na opinião de Ana Lacerda é importante que as pessoas tomem consciência da “impermanência”, ou seja, que tudo sempre muda. E, segundo a praticante do budismo, quando há esse entendimento, cria-se menos expectativas, frustrações e, consequentemente, menos sofrimento.

Luiz Augusto ressalta que, na umbanda, sempre se espera que as pessoas busquem a evolução espiritual. “Sabemos que existem várias provações em curso na Terra, pois ainda estamos no nível de expiação. Desejamos mesmo, rogamos ao Criador, que todos possam ter refletido e que busquem o progresso espiritual, porque essa é a única riqueza que levamos quando desencarnamos”, finaliza.

Fonte: A Gazeta, publicado em 23/05/2020

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