quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Ponto de Mutação: a Visão Espírita


1. Um exame da atual experiência humana leva, inexoravelmente, à constatação de que ela vive uma de suas fases mais contraditórias, em que os extremos atingiram limites nunca antes alcançados. Jamais o progresso científico e o avanço tecnológico foram tão vertiginosos, como o observado nos últimos cem anos. Todavia, quanto ao aspecto moral, o homem não conseguiu caminhar no mesmo ritmo. Daí a razão por que os cientistas sociais são unânimes em reconhecer que o final do século passado e o início do atual constituem mais um ponto de mutação da Humanidade, cuja principal característica será a implantação de uma nova consciência, conforme acentua Leonardo Boff, em seu livro Feminino e Masculino, Uma nova consciência para o encontro das diferenças[1], escrito a quatro mãos com Rose Marie Muraro.

De acordo com eles, “... é só recentemente, no final do século XX e no início do século XXI que podemos falar realmente da emergência de uma nova consciência. A aceleração histórica e a tecnologia se tornaram incontroláveis e imprevisíveis. Mais de 90% de todas as grandes invenções foram feitas nos últimos cem anos. Assim, a humanidade caminhou de uma lenta escalada para uma aceleração explosiva, principalmente depois da invenção das tecnologias eletrônicas, das quais a mais importante é a do computador, que dá início à Segunda revolução Industrial.

Estamos vivendo, portanto, mais um “ponto de mutação” da nossa espécie, criador de uma nova consciência das novas estruturas humanas. Só que este é, talvez, o mais profundo de todos, tão radical quanto aquele que nos transformou de animais em seres humanos: nos primórdios integrados à natureza, os seres humanos também integrados entre si”.

2. Fritjof Capra[2] sustenta que a revolução da física moderna prenuncia uma revolução iminente em todas as ciências e uma transformação da nossa visão do mundo e dos nossos valores. Entende, também, que os movimentos sociais dos anos sessenta e setenta (o livro aqui citado foi escrito em 1981) representam uma nova cultura em ascensão, que, fatalmente, irá substituir as instituições vigentes, reconhecidamente obsoletas. O seu raciocínio se apoia nas tradições místicas orientais, com especial destaque para o I Ching, cujas palavras são utilizadas na abertura da referida obra: “O término de um período de decadência sobrevém do ponto de mutação. A luz poderosa que fora banida ressurge. Há movimento, mas este não é gerado pela força... O movimento é natural, surge espontaneamente. Por essa razão, a transformação do antigo torna-se fácil. O velho é descartado, e o novo é introduzido. Ambas as medidas se harmonizam com o tempo, não resultando daí, portanto, nenhum dano” (op. cit, s/n).

3. Essas opiniões, confrontadas com a realidade, dão a impressão de que não passam de utópicas esperanças de seus autores, e que é quase impossível alimentar qualquer expectativa mais otimista quanto ao futuro da Humanidade. A agressividade, tanto individual como coletiva, vem alarmando as autoridades das diferentes nações e os órgãos internacionais incumbidos de zelar pela paz mundial. A tecnologia a serviço do crime e da guerra dá uma dimensão exata dessa “era de perplexidades e contradições”, em que a fome e a miséria convivem no mesmo espaço com a fartura e a riqueza, o lixo com o luxo, a doença com a saúde, a guerra com a paz! As pesquisas de Erich Hobsbawm[3], professor aposentado do Birkbeck College da Universidade de Londres e, atualmente lecionando na New School for Social Research, de Nova York, concluem que, no século XX, mataram-se mais seres humanos do que em qualquer outra época. Mas, contraditoriamente, tais pesquisas apontam, também, que nunca se chegou a níveis de bem-estar e a transformações iguais aos observados nesse período.

4. Quem conhece a obra de Kardec não se espanta nem se admira diante dessa realidade. Em A GÊNESE, ele é por demais explicito ao afirmar que uma nova geração virá substituir aquela já velha e carcomida que ainda ocupava – e ocupa – seu lugar no mundo, o que implicará, necessariamente, uma série de sacudidelas no planeta. Adverte, porém, que tais sacudidelas não serão caracterizadas por grandes hecatombes de natureza física, porquanto ocorrerão no interior da própria Humanidade, cujas entranhas serão seriamente abaladas: “Hoje, já não são mais as entranhas do planeta que se agitam: são as da Humanidade” (p. 405).

Publicada em janeiro de l868, encerra uma autêntica profecia em relação a todos os acontecimentos que ocorrem atualmente na Terra. No Capítulo XVIII, o Codificador faz uma síntese magistral da situação da Terra neste início de um novo ciclo. Tomando como ponto de referência a Lei do Progresso, ele destaca o duplo aspecto da evolução planetária, o físico e o moral, o que conduzirá à depuração dos Espíritos encarnados e desencarnados que povoam a Terra. Enquanto a primeira se realiza de forma brusca e caracterizada por impressões muito acentuadas, a outra segue um ritmo lento, gradual e insensível. Daí a razão da distância que ainda separa as duas formas de evolução.

5. O “ponto de mutação” dos filósofos e sociólogos, com todas as consequências que as grandes transformações sempre provocaram, está definido de uma maneira clara e incontestável no seguinte trecho da referida obra: “A Humanidade tem realizado, até ao presente, incontestáveis progressos. Os homens, com a sua inteligência, chegaram a resultados que jamais haviam alcançado, sob o ponto de vista das ciências, das artes e do bem-estar material. Resta-lhe ainda um imenso progresso a realizar: o de fazerem que entre si reinem a caridade, a fraternidade, a solidariedade, que lhes assegurem o bem-estar moral. Não poderiam consegui-lo nem com as suas crenças, nem com as suas instituições antiquadas, estos de outra idade, boas para certa época, suficientes para um estado transitório, mas que, havendo dado tudo o que comportavam, seriam hoje um entrave. Já não é somente de desenvolver a inteligência o de que os homens necessitam, mas de elevar o sentimento e, para isso, faz-se preciso destruir tudo o que superexcite neles o egoísmo e o orgulho” (p. 404).

6. É indiscutível a importância do papel que o Espiritismo cabe desempenhar na árdua tarefa de elevação do sentimento humano. Isso não significa nenhuma vã pretensão de torná-lo universalmente aceito, uma vez que as enormes diferenças culturais e raciais, ainda presentes no mundo, inviabilizam tal resultado. O conflito de culturas, principalmente entre o Ocidente e o Oriente, impede, no nosso modo de ver, a sua acolhida e adoção entre povos e nações que ainda não conseguiram desembaraçar-se do formalismo e ritualismo religiosos, fato que se observa, sem exceção, em todos os credos. Isso tem gerado um outro conflito de seríssimas consequências e ao qual não se dá o devido cuidado: o conflito de teologias, que existe mesmo no seio das próprias correntes de uma mesma religião. Basta lembrar, por exemplo, as disputas que ocorrem entre partidários da Teologia da Libertação e os Ortodoxos, na Igreja Romana; entre os Tradicionalistas e os adeptos da Teologia da Prosperidade – base de todo o sistema neopentecostalista –, nas Igrejas Reformadas, ou a contenda quase bélica entre sunitas e xiitas, observada no Islamismo.

7. O Espiritismo, no seu aspecto religioso, é o único que se mantém distante dessas indesejáveis divisões, não obstante as malogradas tentativas de alguns de seus seguidores mais exaltados, o que se explica e até se justifica como resultante das reminiscências de seu passado religioso. A razão de ser de sua importância na atual conjuntura da Terra decorre desse fato. Compete-lhe, pois, a relevante missão de contribuir para a efetiva instalação, divulgação e manutenção da noção de religiosidade entre os homens, o que somente se conseguirá com a espiritualização do ser humano.

Kardec anteviu essa situação e toda sua obra se destina, iniludivelmente, à tarefa de alfabetização espiritual da Humanidade, principal causa de todos os seus males e sofrimentos. Tal encargo originariamente caberia às religiões, mas elas se deixaram levar pelas disputas internas e externas, e não assimilaram as lições legadas por Jesus. Ao invés de aproximar o homem de Deus, empenharam-se em torná-Lo cada vez mais distante, através das complicações de seus rituais, dos absurdos de seus dogmas, do verdadeiro culto de terror divino que implantaram, aliados à presunção de serem titulares absolutas da verdade, em detrimento das demais. O pároco da Igreja do Carmo em Belo Horizonte, Frei Cláudio Van Balem – que há muito anda na mira da Congregação para a Doutrina da Fé (nome moderno do Tribunal do Santo Ofício) – em entrevista concedida ao jornal ESTADO DE MINAS do dia 6 de outubro de 2002, declarou textualmente que “talvez o berço maior de toda a violência da história da humanidade se encontre nas religiões, com sua ânsia de monopolizar a verdade”. Depois de denunciar o enorme analfabetismo espiritual que ainda predomina no mundo, afirma: “... o analfabetismo é marcado pela uniformidade e conservação, e a espiritualidade pela diversidade e inovação. O analfabetismo aprisiona e fragmenta. A espiritualidade liberta e integra. Enquanto o analfabetismo exclui, a espiritualidade inclui”. E conclui dizendo que “o analfabetismo pode estar associado à religião, ao passo que as pessoas espiritualizadas vivem a religiosidade”. Essas ideias “coincidem” com aquilo que o Codificador sempre sustentou, e guardam profunda identidade com o pensamento dos Espíritos. É o que se vê, por exemplo, em Joanna de Ângelis[4]: “A religiosidade é uma conquista que ultrapassa a adoção de uma religião; uma realização interior lúcida, que independe do formalismo, mas que apenas se consegue através da coragem de o homem emergir da rotina e encontrar a própria identidade”.

Em síntese, referidas opiniões confirmam a afirmativa de que as revelações do Plano Espiritual Superior seriam comunicadas ao mundo em diferentes lugares e por diferentes pessoas, independentemente de cor, raça, posição social ou credo religioso, porque “o vento assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito” (João, 3: 8).


José Carlos Monteiro de Moura
 
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[1] Boff, Leonardo e Muraro, Rose Marie – FEMININO E MASCULINO, Editora Sextante, Rio, 2002, pp 10 e 11.

[2] Capra, Fritjof – O PONTO DE MUTAÇÃO, Editora Cultrix, 1987.

[3] Hobsbawm – ERA DOS EXTREMOS – O breve século XX – 1914-1991 Cia. das Letras, São Paulo, 2003.

[4] O HOMEM INTEGRAL, psicografia de Divaldo Pereira Franco, Livraria Espírita Alvorada – Editora, Salvador, Bahia, 1991, p. 60.

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