O surgimento de várias produções abordando a Doutrina Espírita tem surpreendido pelo interesse despertado no público brasileiro. Mas o fenômeno se alastra também por Hollywood e cineastas como Clint Eastwood e Gus Van Sant já ingressaram na temática.
A abordagem da Doutrina Espírita tem mobilizado um contingente de milhões de brasileiros a lotar os cinemas. Mas, ao mesmo tempo, essa situação começa a se alastrar pelo planeta. Notícias de produções de filmes, peças e telefilmes pipocam na internet e nos sites de cinema.
Algo parecido, mas em escala muito menor, ocorria com os lançamentos dos filmes bíblicos produzidos por Cecil B. De Mille, lá nos anos 50 do século passado. Agora, a temática espiritual (não confundir com transcendência, bem mais ampla) desperta não apenas o interesse dos espiritistas (que no Brasil, segundo pesquisas, eram 2,3 milhões no início da presente década e hoje somam mais de quatro milhões de pessoas, o que estabelece a maior população espírita do mundo), mas igualmente os adeptos de outras religiões.
E esse contato tem provocado uma migração lenta, porém consistente para a doutrina revelada ao mundo por Allan Kardec através de seus livros, agora disputadas em adaptações para o cinema. E pelo número de produções em andamento, o movimento está apenas começando.
Para uns se trata apenas de uma onda passageira. Para outros, a oportunidade para o conhecimento de uma doutrina que trata da vida após a morte – uma das grandes interrogações humanas.
Uma Discussão
Há quem diga, por sua vez, tratar-se de obras doutrinárias e, ainda, segundo outros, desprovidas de qualidades cinematográficas, cuja intenção é faturar fácil nas bilheterias. A discussão não para aí.
Na imprensa, sejam nos veículos impressos, colunas, sites ou blogs, nota-se um grande desconhecimento sobre a doutrina kardecista. Alguns tratam os filmes demonstrando um absurdo desconhecimento e, pior ainda, tentam esconder o despreparo apontando falhas estruturais ou técnicas nos filmes.
Isso, sem descartar os que palmilham o desrespeito utilizando o mau humor e colocações insensatas frente à exposição de que a vida continua após o descarte do corpo físico. Para muita gente essa é uma doutrina de loucos. Precisam ler, começando por Platão.
Há, ainda, por parte de pesquisadores e analistas de cinema, uma busca para a explicação do sucesso o qual esses vêm filmes alcançam junto ao grande público. Seria apenas um fenômeno?
Pode haver outras razões: a busca pelo sentido da espiritualidade? A procura do entendimento dos desconcertos da vida que o espiritismo explica com o processo de reencarnação? Ou apenas a simples curiosidade em conhecer os filmes? Ou simplesmente conhecer a doutrina através dos filmes?
Sabe-se que o cinema nasceu com a espiritualidade da criação humana. Nenhuma novidade que, a partir desse sentido de origem, o cinema tenha efetivado na religião um de seus temas preferidos. Mas, até então, prevalecia o Livro Sagrado: a Bíblia e os seus personagens.
De lá para cá, nesses mais de um século de existência do cinema, milhares de filmes foram feitos abordando as mais diversas religiões, e, quase sempre, com resultado expressivo quanto ao despertar da atenção do público em escala global. A espiritualidade nunca se desgarrou do cinema.
É curioso ler, por exemplo, artigos de críticos estadunidenses analisando se Avatar, de James Cameron, é ou não uma criação de cunho panteísta. Quanto a isso, recomenda-se a leitura do artigo do crítico Ross Douthart, do The New York Times.
Nessa discussão que já dura quase um ano há quem garanta que Avatar seja um filme sobre a espiritualidade que reina no universo, de um todo unido por partes. E, alguns, o analisam como um filme moldado no interior da doutrina espírita. Pode parecer irrelevante, mas não é. A provocação é um dos cernes do cinema.
E pelo andar da carruagem essa discussão está apenas em sua imberbe etapa. Pelo número de produções em estágio de planejamento, em filmagem e ainda outras com datas já estabelecidas para chegar aos cinemas parece que a onda – assim seja -, veio para ficar.
O que se pode buscar nesse momento é: o fenômeno trata-se apenas de uma grande coincidência, uma tendência de momento ou uma coisa orquestrada? Para os adeptos do espiritismo, simplesmente uma convergência. Nada de acaso. Numa posição de discussão, a possibilidade oportuna para o contato inicial para o conhecimento da doutrina que exige apenas práticas como a da prece, relevância moral e a caridade.
Um conjunto de acontecimentos, digamos, mapeia esse fenômeno. A violência cada vez mais contundente, a corrupção que se alastra por todos os setores da sociedade, a busca desenfreada pelos bens materiais, a devastação do meio ambiente e a fúria da natureza marcam o mundo com um cenário de incertezas.
Nesse momento, compreender o espiritismo, que está agarrada à Filosofia e a Ciência, pode representar a compreensão dos anseios humanos e o entendimento do mundo neste momento de crise.
Vivências Espirituais
Há uma busca pessoal pelo entendimento das pessoas por si mesmo, de como e porque o planeta é como é, pelo sentido da existência da morte, e, também, da busca pelo seu papel pessoal no mundo. Daí os tabus e preconceitos para com a doutrina estão se dobrando.
Os constantes relatos de pessoas que vivenciaram os estados de “quase morte” e suas luzes; os cada vez mais insistentes casos de gente que tem “flashes” ou sonhos de existência em vidas passadas, a comprovação de casos de reencarnação, o crescimento do número de pessoas que se descobrem com sensibilidade mediúnica e o fato da existência de vida após a morte não ser o fim da existência. Não mais estão sendo vistas como fantasia, mas como fatores relativos à vida.
Nada a estranhar, portanto, o aumento avassalador da busca das pessoas pelos centros espíritas. O sofrimento imposto ao mundo na atualidade e o aumento cada vez maior da dor da perda de entes queridos estejam despertado as pessoas para uma busca espiritual que lhe dê respostas – mesmo que apenas para simples conforto passageiro.
De certa forma, muitos estão encontrando um sentido para a existência ao assistem a Nosso Lar, quando se depararem com uma exposição emocionante de como é o mundo no “outro lado da vida”. O blog de cinema do Diário do Nordeste evidencia isso através das postagens efetuadas por dezenas de opiniões de pessoas encantadas com o filme – e com o desapontamento de não ter sido indicado para representar o cinema brasileiro no Oscar.
Mas, a produção de filmes com a abordagem espiritista iniciada por Bezerra de Meneses – o diário de um espírito (2008) – sem se esquecer do pioneiro Joelma – 23º Andar (1980), de Clery Cunha, adaptado de Somos Seis, de Chico Xavier –, não se restringe ao Brasil, como muitos são levados a pensar.
No Estrangeiro
Há uma extensa lista de produções inéditas comercialmente no circuito brasileiro e que podem ser facilmente “pescados” na Internet. E um filme chamado Além da Vida pode deflagrar, de vez, a chegada do espiritismo no cinema.
Além da Vida (Hereafter), a nova criação do estadunidense Clint Eastwood, estreou em 22 de outubro de 2010, nos EUA. Exibido no Festival de Toronto, surpreendeu por tratar da vida após a morte. Uma guinada na carreira de um cineasta tido como materialista.
Escrito por Peter Morgan, de A Rainha e Frost/Nixon, Além da Vida relata o drama de três pessoas de países diferentes – Inglaterra, França e EUA – que têm que lidar com a morte de pessoas queridas quando são alvos de um Tsunami.
No enredo, um operário estadunidense (Matt Damon, da série Jason Bourne) que se conexa com o mundo espiritual através da mediunidade, tem uma explicação para o desastre que se abate sobre várias famílias.
O enredo centra-se entre francesa (Cécile de France), a qual muda radicalmente seus conceitos de vida após passar por uma experiência de quase-morte; e um garotinho londrino que perde os pais e irmãos começa uma desesperada busca por respostas. Os destinos desses três personagens se cruzam e terão suas vidas transformadas por uma grande revelação.
Outra produção estadunidense a explorar a temática da vida após a morte, A Vida e a Morte de Charlie, de Burr Steers (de 17 Outra Vez). Zac Efron interpreta um rapaz que não se conforma com a morte do irmão pré-adolescente. Abalado, procura emprego no cemitério onde ele está enterrado. Em sua tentativa, acaba tendo contato com o espírito do irmão – que assim passa a ficar preso à Terra.
Quem também envereda pela abordagem da doutrina espírita é o respeitado Gus Van Sant. Seu recente trabalho, Restless, traz Mya Wasikowska, a Alice do filme de Tim Burton, no papel de uma adolescente apaixonada por um rapaz (Henry Hopper) que gosta de assistir a funerais. Presa a uma cama de hospital, em estado terminal, ela conversa diariamente com o espírito de um piloto kamikaze (Ryo Kaze) falecido na Segunda Guerra Mundial.
Outra produção que chama a atenção é o drama intitulado The Rite (O Rito), dirigido por Mikael Hafstrom, no qual um padre estadunidense vai à Itália estudar em uma escola de exorcismo – obviamente católica -, e se depara com o mundo dos espíritos. Alice Braga, os veteranos Anthony Hopkins, Rutger Hauer e Franco Nero, além de Ciaran Hinds e Chris Marquette formam o elenco central.
Duas outras produções chegaram aos cinemas em janeiro de 2011. Dirigido por Predrag Antonijevic, Little Murder, produção de Hollywood, se desenvolve após a tragédia do furacão Katrina que devastou a cidade de Nova Orleans. Josh Lucas interpreta um detetive que se depara com o espírito de uma mulher assassinada e, com a ajuda dela, empreende uma caçada ao criminoso.
A Espanha comparece com Exorcismus, dirigido por Manuel Carballo, que acompanha o caso de uma família que, ao ver a filha possuída por um demônio, apela para um padre para fazer um exorcismo. O padre aceita, desde que possa filmar o evento, sem imaginar que isso terá consequências desagradáveis.
Há, ainda, Reincarnate, produção de M. Nigh Shyamalan a ser dirigida por Daniel Stamm (de O Último Exorcismo, em estréia nesta sexta), enfocando o julgamento de um serial killer e a ação, sobre os jurados, dos espíritos vingativos cujas existências terrenas foram tiradas por ele.
Produções Nacionais
A começar por As Mães de Chico Xavier, de Glauber Filho e Halder Gomes, adaptação do livro Por Trás do Véu de Ísis, do jornalista e escritor Marcel Souto Maior.
O enredo acompanha o drama de três mulheres tocadas pela dor da perda de filhos queridos. Ruth (Via Negromonte), cujo filho se envolvia com drogas; Elisa (Vanessa Gerbelli), que se devotava ao filho pequeno; e Lara (Tainá Muller), professora em conflito com uma gravidez não planejada. Suas perdas ganham sentido ao terem contato com o médium Chico Xavier, novamente interpretado por Nelson Xavier.
Produzido pela Estação da Luz Filmes, As Mães de Chico Xavier será distribuído no País pela Paris Filmes e estreou em primeiro de abril de 2011, logo após ser a atração de abertura do I Festival de Cinema Transcendental que aconteceu em março em Brasília e Fortaleza.
A lista de produções rodadas neste ano prossegue com O Contestado – restos mortais, do catarinense Sylvio Back, documentário que reconstitui o episódio histórico da Guerra do Contestado, envolvendo Paraná e Santa Catarina entre 1912 e 1916. Back refaz a estranha história dessa guerra através de 30 médiuns em transe, articulando ainda os fatos aos depoimentos dos sobreviventes e historiadores.
O filme, exibido em diversos festivais, incluindo É Tudo Verdade e Gramado, provocou muita polêmica. Há quem defenda que tudo apresentado ali se trata de “arrumação” em “encenação teatral”, o que é rechaçado pelo diretor.
“A inserção de relato dos médiuns é que perturba e conturba a narrativa, serve para borrar as fronteiras draconianas entre documentário e ficção”, explica Back. “O transe, como uma insondável camada de do inconsciente coletivo e da história do homem, matéria-prima das altas indagações no campo da física quântica, é a mais pura e límpida poesia”, finaliza.
Também exibido em Gramado, O Último Romance de Balzac, de Geraldo Sarno, retoma a polêmica, que já dura 45 anos, em torno do livro Cristo Espera por Ti, psicografado por Waldo Viera e cuja autoria seria de Honoré de Balzac (1799-1850). O filme explora os bastidores da criação do livro, incluindo o psicólogo Osmar Ramos Filho, que estuda o escritor francês há mais uma década e tenta mostrar a identificação entre as obras do autor e francês e o livro psicografado.
Outro filme exibido em Gramado e também envolto em polêmica, o documentário As Cartas Psicografadas por Chico Xavier, realizado por Cristiana Grumbach, encerrou os lançamentos espíritas do ano e entrou em cartaz no dia 2 de novembro de 2011. É o enfoque de cinco famílias que perderam entes queridos e recebem o conforto espiritual através de cartas enviadas pelo médium, nas quais os desencarnados as tranquilizam. O cerne do filme é o processo de identificação, por parte de cada uma das mães, de elementos pessoais dos mortos contidos nas cartas.
“Em minhas pesquisas, apurei que o Chico dava uma atenção especial às mães. Ele considerava que um filho morrer antes dos pais era algo fora do natural. Meu documentário tenta descrever o impacto das cartas na trajetória dessas famílias”, revela Cristiana.
Outra produção já finalizada, O Filme dos Espíritos, produzido pela Mundo Maior Filmes, adaptação livre do Livro dos Espíritos, de Allan Kardec. Desesperado com a perda da esposa e do trabalho, um homem à beira do suicídio encontra o livro de Kardec e através dele inicia uma jornada interior transformadora, descobrindo o sentido das coisas na pluralidade do mundo espiritual.
Dirigido por José Marouço e Michel Dubret, traz no elenco Luciana Gimenez (que substitui Regina Duarte e envelheceu 30 anos para se apresentar como uma senhora setuagenária), Sandra Corveloni, Enio Rodrigues, Ana Rosa, Ettty Fraser e Nelson Xavier.
Outro filme praticamente concluído e aguardado com interesse, E a Vida de Continua, tem a direção de Paulo Figueiredo e Amanda Costa e Lima Barreto nos papéis centrais. A história acompanha o drama de um casal desconsolado que recebe o amparo de amigos espirituais, os quais o direciona para uma atitude de renovação da vida através do estudo e do trabalho.
O filme, produzido pelo jornalista paulista Oceano Vieira de Mello, ex-dono do “Jornal do Vídeo” e proprietário da DVD Versátil, distribuidora de filmes de arte e documentários, foi um dos mais aguardados.
Espírita há 20 anos, Oceano tem sido o responsável pelo aparecimento no Brasil de diversos filmes e documentários sobre a doutrina, através do selo Vídeo Spirite, criado especialmente para abrigar a produção do gênero, tanto nacional quanto estrangeira. Ele mesmo tem dirigido documentários sobre algumas das personalidades espiritistas do País, produções essas em exibição no Canal Brasil.
Igualmente em fase de finalização, Área Q, produzido por Halder Gomes e a Estação da Luz e com direção de Gerson Sanguinitto, enfoca o aparecimento de objetos voadores não identificados nos sertões cearenses, mais especificamente nos municípios de Quixadá e Quixeramobim – daí a área Q do título.
Halder diz que seu filme trata de “ufologia e espiritualidade e trata do processo de reencarnação”. No enredo, repórter de um jornal dos EUA inconformado com a morte do filho, a contragosto aceita cobrir, no interior do Ceará, os eventos que marcam o aparecimento de discos voadores e que mobiliza os moradores de duas cidades.
Outra produção que avança pelo espiritismo é Não se Pode Viver sem Amor, de Jorge Duran, que explora os problemas vividos por um menino com poderes para normais.
E, rolando desde o início de 2007, está o roteiro de Ninguém é de Ninguém, baseado no livro homônimo psicografado por Zíbia Gasparetto do espírito Lucius, que até agora não foi filmado. As últimas notícias dão conta de que o produtor Tomislav Blazic planejava iniciar as filmagens no segundo semestre de 2011, em São Paulo. O filme, segundo consta, seriarodado com uma versão falada em inglês.
Esse cinema, polêmico para uns, necessário para outros, nada tem de maior ou de insignificante. É um cinema comum, como os tantos outros gêneros. Todo e qualquer gênero aborda as diferenças. E a diferença abordada nos filmes de cunho espiritualistas reside na busca do entendimento da vida após a morte, direcionando, assim, a um sentido à condição humana.
Não por menos esses filmes estão levando milhares de pessoas a um pensar mais filosófico sobre as coisas da vida e, também, das possibilidades além dela. E se faz pensar, clama por olhares de razão e tolerância. Afinal, o tempo do obscurantismo ficou no passado. Ou não?
Texto publicado no Diário do Nordeste, em 25 de outubro de 2010 e atualizado em 11/12/2019.
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