Por Flávia Cesarino Costa
Como todas as origens, o nascimento do cinema é pensado muitas vezes como uma espécie de acontecimento mágico, em que irromperam uma nova técnica e uma nova linguagem, inéditos e independentes do que havia até então. É evidente que, como todas as origens, este momento foi recriado depois. O ato mítico de invenção inaugural do cinema é a famosa primeira exibição de filmes pública, paga e em telas grande, promovida pelos irmãos Louis e Auguste Lumière, em 28 de dezembro de 1895, no porão do Grand Café, Boulevard des Capucines 14, em Paris. Esta sessão certamente ocorreu, mas o que interessa é pensar por que foi tão privilegiada pela história do cinema.
Nesses tempos de centenário, têm-se retomado alguns lugares-comuns sobre os Lumière e o sucesso do cinematógrafo: a ideia de que a sessão do Grand Café foi efetivamente a primeira, de que a invenção assustou o público (que acreditava tratar-se de trens e veículos reais que se aproximavam) ou a ideia de que os irmãos Lumière criaram o cinema documentário. Parece-me que, mais importante do que desmentir esses fatos, é contextualizá-los historicamente.
Variam os critérios usados para definir as origens. Como aponta lucidamente Jean-Claude Bernardet, não é por acaso que no Brasil a ideia de um nascimento do cinema está associada não a uma projeção pública e paga -critério dos historiadores europeus-, mas a uma filmagem. A primeira projeção no Brasil aconteceu em 8 de julho de 1896. Mas os historiadores brasileiros preferem considerar que a filmagem da baía de Guanabara, por Afonso Segreto, em 19 de dezembro de 1898, constitui fato mais adequado para ser considerado como nascimento, mesmo não havendo prova histórica concreta -um filme- dele (que foi noticiado na imprensa da época, mas que pode não ter ocorrido).
Para Bernardet, a escolha dessa data ``está investida pela visão corporativa que os cineastas brasileiros têm de si mesmos e por uma filosofia que entende o cinema como sendo essencialmente a realização de filmes" (1), em detrimento da exibição.
Voltando a 1895, são velhas as polêmicas de anterioridade relativas aos aparelhos. Muitos reconhecem que, em 1º de novembro de 1895, Max Skladanowsky já tinha feito a primeira apresentação pública de seu ``bioskop", em Berlim. Em Chicago, o ``eidoloscope" de Lathan também já tinha estreado em 26 de agosto de 1895.
O fato de que tenham sido exibições públicas e pagas, mas tecnicamente imperfeitas, de aparelhos que saíram de circulação, não as faz menos pioneiras que o ``cinematographe" dos Lumière. Mas este último provou ser a invenção que melhor se adaptou às circunstâncias da época, criado não por um modesto inventor, mas por industriais muito conscientes das injunções comerciais envolvidas.
Explica-se o sucesso do cinematógrafo pelo fato de os operadores Lumière captarem imagens do ``mundo real" em vez das ingênuas encenações de Edison. Talvez esta seja apenas uma parte da história. O historiador Alan Williams afirma que o realismo documental desses filmes não se deveu à perfeição técnica da máquina -que em suas estreias já demonstrou inúmeros defeitos-, mas a uma planejada e consciente estratégia de marketing (2). Na verdade, suas imagens ``realistas" ajudariam o cinematógrafo a ser legitimado pela comunidade científica. Este público estava pouco interessado nas imagens de lutas de boxe ou danças de vaudeville como as que eram rodadas por Edison em seu estúdio, para serem mostradas nos quinetoscópios, desde 1894.
O realismo documental só se tornou uma vertente importante do cinema décadas depois. Considerar melhores os documentários dos Lumière é esquecer que eles foram também ``ficcionistas" e que Edison também foi ``documentarista", filmando cenas externas.
Os Lumière entenderam que o mercado para os seus filmes não era o público refinado, mas sim uma audiência popular. Em seus primórdios, o cinema não era o que hoje se entende e se comemora como tal. Estava misturado a formas populares e heterogêneas de cultura como o circo, os espetáculos de magia e hipnotismo, números de pantomima, sessões de adestramento de animais e exibições de lanterna mágica.
Os primeiros filmes eram exibidos em locais de shows de variedades. Nos EUA, o principal desses locais era o vaudeville, onde havia uma série de atos curtos sem nenhuma conexão entre si, por exemplo: uma declamação de poesia, placas de lanterna mágica sobre o Japão, equilibristas eslavos, um contorcionista, pulgas amestradas. Os filmes eram atrações autônomas que podiam se encaixar nas mais diferentes programações.
Nesse contexto, as imagens documentais tinham exatamente o mesmo valor que as piadas encenadas, os números de dança, luta, strip-tease, que os quadros vivos sobre a ``Paixão de Cristo" ou as reconstituições de batalhas travadas em terras distantes: eram espetáculos de puro divertimento.
Novos historiadores, como Tom Gunning, entendem que essas imagens fazem parte de um cinema que não existe mais: não estava interessado em contar histórias nem em trazer lições de moral. Os atores falavam com a câmera, riam. Cada filme era uma atração individual, curtíssima, cujo objetivo era apenas maravilhar o espectador, fosse ou não ficção. Aliás essa distinção também é um fato posterior, pois a fronteira entre documentário e ficção não era muito explícita naqueles tempos.
Privilegiar as imagens documentárias dos Lumière é, assim, querer garantir a elas um lugar de honra numa história do cinema ultrapassada. É provável que os próprios irmãos Lumière encarassem suas imagens mais como atrações de vaudeville do que como documentários. Isto pode ser comprovado pela notável competência com que se instalaram nos EUA, a ponto de gerarem uma reação fulminante de Edison.
Por um curto período (1896/1897) os Lumière dominaram o mercado de exibição dos EUA (3). Ofereciam à rede de vaudevilles -os principais compradores de filmes- um número completo, que incluía projetor, filmes e operador, podendo ser encaixado em qualquer programação local. Já os licenciados de Edison trabalhavam com o vitascópio num complicado sistema de franquia. O cinematógrafo funcionava na manivela e era ao mesmo tempo projetor e câmera, enquanto o projetor de Edison, o vitascópio, pesava 500 kg e só funcionava com eletricidade, cujo fornecimento era irregular naqueles tempos. Enquanto a firma que explorava o vitascópio falia, os Lumière lucravam alto, até quem, em 1897, Edison os expulsou da América por meio de ameaças judiciais.
A partir de 1910, o cinema foi enquadrado na cultura burguesa de classe média. Tendo sido moral e tematicamente saneado, tornando-se um divertimento ``educativo e familiar", uma forma de arte tão legítima quanto a pintura ou o teatro, consumida em locais limpos e disciplinados, podia então voltar-se para o passado e construir suas origens. Só depois de romper o círculo da marginalidade é que o cinema passou a ser celebrado.
Ao mitificar os irmãos Lumière a história deixa tomar corpo a ideia de uma invenção instantânea. Leo Sauvage conta, ao contrário, como Georges Sadoul foi condescendente ao não questionar Louis Lumière, nos anos 40, sobre suas declarações passadas (4). O industrial teria admitido já conhecer o quinetoscópio de Edison antes de construir o cinematógrafo, mas anos depois disse ao próprio Sadoul que jamais tinha visto de perto um aparelho daqueles.
Finalmente, a ideia de que o público se assustou com ``A Chegada do Trem na Estação", na sessão inaugural do Grand Café, é também apenas mais um mito de origem do cinema. Pesquisas recentes constatam que esta reação do público não figura em nenhum documento sobre esta sessão (5). Havia no século 19 artes que já exploravam ilusões de ótica e o efeito sobrenatural de imagens realistas, porém impossíveis (as fantasmagorias, os panoramas). Assim, como afirma Gunning, é mais sensato admitir que o assombro deste público vinha do choque entre, de um lado, a força da ilusão realista das imagens em movimento e, de outro, a certeza de que se tratava apenas de mais um truque...
NOTAS (1) Jean-Claude Bernardet, ``Acreditam os Brasileiros em seus Mitos? O Cinema Brasileiro e suas Origens" in: prefeitura do município de São Paulo/SMC/DPH, ``O Direito à Memória", São Paulo, 1992, pág. 178(2) Alan Williams, ``The Lumière Organization and `Documentary Realism"', in: John Fell, Film Before Griffith, Berkeley, University of California press, 1983(3) Veja Robert Allen, ``Vitascope/Cinematographe: Initial Patterns of American Film Industrial Practice" in: John Fell, Film Before Griffith(4) Leo Sauvage, ``L'affaire Lumière", Paris, Lherminier, 1985(5) Tom Gunning, ``An Esthetic of Astonishment", Art & Text 34, Spring 1989, pág.31
Há um dia
Nenhum comentário:
Postar um comentário