terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

O Espiritismo e a Cultura Contemporânea



Por Denizard de Souza (DF)

O tema da contemporaneidade ou atualidade cultural representa um grande desafio à compreensão histórica e social de uma época. Afinal, trata-se da tentativa de “decifrar” os caminhos sociais e as tendências culturais de um período histórico, que em boa medida é organizado no seu contexto de espaço e tempo.

Tal empreendimento de estudo, diz respeito à necessidade de compreendermos o “momento histórico” em que vivemos e as diferentes modalidades de organização da vida nos mundos sociais contemporâneos ao nosso.

Neste sentido, o contemporâneo é sempre plural, porquanto as tendências culturais de uma sociedade não se repetem necessariamente noutro contexto, podendo inclusive a pluralidade significar diferentes ritmos históricos, econômicos, sociais, comportamentais e éticos.

Pode parecer estranho, falar de atualidades culturais em termos de tendências plurais, sobretudo nestes tempos de globalização econômica e comunicacional, mas é exatamente dessa forma que vamos debater este assunto neste artigo.

Se a questão da cultura contemporânea é uma preocupação generalizada da humanidade que experimenta o impacto das mudanças econômicas, tecnológicas, políticas e sociais, não pode ser menos relevante para nós espíritas, sobretudo quando consideramos que Allan Kardec, ao organizar o sistema teórico-metodológico do Espiritismo no século XIX, manteve um diálogo cultural intenso com as principais tendências filosóficas e científicas do seu tempo bem como propôs que o Espiritismo “lançasse luz sobre todas as questões da economia social”.

Kardec em “O que é o Espiritismo” e na Revista Espírita analisou inúmeros problemas filosóficos do seu tempo e esclareceu questões práticas, sociais, buscando apresentar a “Solução de alguns problemas com Auxílio da Doutrina Espírita”. (O Que é o Espiritismo, cap.III, Allan Kardec).

As formas de organização do mundo social contemporâneo e as práticas culturais do nosso tempo têm sido definidas de muitas maneiras: pós-modernidade, sociedades-em-rede, sociedade pós-industrial, sociedade da informação e do conhecimento, sociedades de consumo, sendo que, tais denominações foram elaboradas no contexto das mudanças porque passa o mundo em vias de globalização.

É possível identificar no contexto da globalização econômica, o esvaziamento político-social de algumas categorias tipicamente modernas: o “estado-nação”, que enfraquecido, perde em controle econômico e fonte social de identidades coletivas; a crise da ciência moderna, enquanto razão universal, face à diversidade de tradições culturais não-ocidentais; o deslocamento do eixo da economia industrial para o âmbito da “Informação”.

O que se observa é um esforço dos cientistas sociais e historiadores em compreender as consequências políticas, culturais e éticas da formação de uma sociedade mundial.

A cultura contemporânea em sua complexidade é simultaneamente tecnocientífica e mística, global e local, tecnológica e tradicional, democrática e fundamentalista, racional e dogmática. Assim sendo, ela reflete as novas maneiras de “organizar os mundos sociais” os quais estão ideologicamente fragmentados, esteticamente plurais, voltados ao espírito de “seita” em desfavor da “Religião oficial”, economicamente integrados, interligados pelo regime tecnológico da comunicação em redes, com a hegemonia crescente da cultura de consumo e finalmente vivendo a crise de valores da atualidade: a perda das referências nacionais, ideológicas, religiosas, filosóficas, políticas e éticas do nosso tempo.

Nestas rápidas considerações temos algumas características do cenário cultural contemporâneo.

O Espiritismo nasceu com a modernidade, no berço cultural da nova civilização industrial e democrática, na França da segunda metade do século XIX e por consequência disso traz em sua identidade a marca cultural desse contexto, sua síntese e superação.

Graças ao espírito transcendental do pensamento de Kardec, a metodologia original que desenvolveu no estudo dos fenômenos espirituais (Análise Sintética, interface entre racionalidade e transcendência, verificação experimental e diálogo transcendental com os espíritos, análise dos fatos mediúnicos e interpretação complexa dos fenômenos espirituais, em suas múltiplas dimensões), foi possível ao construtor do Espiritismo uma atitude intelectual autônoma face às limitações do materialismo filosófico e científico (Marxismo e Positivismo), ao dogmatismo religioso e a crença tradicionalista na fé cega (Cristandade tradicional).

Em verdade, não fosse a infidelidade de Kardec aos cânones do materialismo científico (filosofia da “ciência positiva”) e da religião tradicional, não seria possível o conhecimento de síntese da realidade que o Espiritismo proporciona. Neste aspecto da integração de linguagens científicas, filosóficas, religiosas, morais e espirituais, Kardec soube está a frente de seu tempo, transcender o contexto cultural da racionalização positivista.

Em outras palavras, o Espiritismo foi elaborado com um modelo de racionalidade aberta, progressiva, que soube integrar, conhecimentos científicos da época e paradigmas futuros. A partir disso, vejamos como é possível examinar o caráter de atualidade, aplicabilidade e contemporaneidade do Espiritismo.

A Doutrina Espírita em sua abrangência é uma visão de complexidade da teia da vida, da espécie humana, da individualidade espiritual e do universo.

Neste sentido, o Espiritismo reúne dimensões de análise de diferentes culturas e períodos históricos da humanidade: da modernidade ocidental aplica a Racionalidade experimental, da Hermenêutica define o objeto de fé do Espiritismo, da Tradição cultural da Grécia Antiga explica a Imortalidade da alma, a Reencarnação, o Autoconhecimento, das Tradições milenares do oriente, converte o “Karma” determinista em Lei dinâmica da evolução, do Iluminismo torna transcendente as leis sociais do progresso, do extraordinário legado do Cristo recebeu a Lei universal do Amor e da herança espiritual da mediunidade A Comprovação e uma Interpretação inovadora destes grandes Fundamentos da Sabedoria Universal.

Pelo visto, o Espiritismo está equipado para lidar com as questões e desafios do mundo contemporâneo.

A Física contemporânea identificou os limites da “ciência moderna” no esgotamento de seu paradigma unidimensional da matéria. A atualidade científica ou tecnológica trabalha na criação de equipamentos visando o aproveitamento e o controle de padrões de energia (“sutis”) da estrutura subatômica da matéria (universo quântico). Trata-se da desconstrução do velho materialismo científico, da superação da concepção newton-cartesiana de mundo.

O Espiritismo na atualidade, através dos avanços da Transcomunicação instrumental (utilização de equipamentos eletrônicos para captar energias de planos espirituais) e por meio da investigação científica dos “Campos bio-magnéticos estruturadores das formas biológicas”, pode ser estudado em interface com a pesquisa da Física contemporânea e da biologia molecular, que há muito fez a integração entre o conceito de “unidades biológicas” e os “sistemas de auto-organização”, orientados por códigos e informações.

Em outro campo da cultura contemporânea, a opinião pública mundial redefiniu a perspectiva puramente econômica da ideia de progresso e luta por um desenvolvimento social sustentável, que integre de forma harmônica todos os componentes do ambiente social e natural nos benefícios do progresso.

O Espiritismo aplica o conceito reencarnacionista de forma ecológica, uma vez que demonstra a unidade das várias personalidades reencarnantes na individualidade espiritual, ou seja, estabelece um sentido de solidariedade entre as gerações, porquanto ao invés de usarmos os recursos do meio ambiente de forma sustentável visando os nossos descendentes, o fazemos visando a comunidade espiritual da qual participamos e que retorna para “herdar” no tempo e no espaço, os recursos do meio ambiente, “esgotados” ou “sustentados” conforme o uso.

O mundo contemporâneo assistiu estupefato os últimos ataques terroristas no WTC, indivíduos de tal modo “integrados na consciência coletiva” (“fanático-religiosa” de seu grupo), matam-se e assassinam milhares de pessoas “em nome de valores fundamentalistas”. Por outro lado, a aliança da OTAN, “capitalista-democrática”, emprega a retaliação em forma de bombardeio aéreo, provocando destruição e morte.

O Espiritismo desde o seu nascedouro assumiu uma visão hermenêutico-libertária da experiência da fé. Nas palavras do sábio francês, Allan Kardec, “O Espiritismo dirige-se àqueles que não creem ou duvidam, e não aos que têm fé e aos quais essa fé é suficiente; não diz a quem quer que seja que renuncie às suas crenças para seguir as nossas, e nisto é consequente com os princípios de tolerância e de liberdade de consciência que professa”. (Revista Espírita, 1863, pág.367, Allan Kardec).

Como se vê, na posição adotada pelo codificador do Espiritismo há mais de 138 anos atrás, a Doutrina Espírita não tem pretensões conversionistas nem salvíficas muito menos assume uma perspectiva etnocêntrica. Ou seja, a visão espírita reconhece o significado da fé para àqueles que a professam e vivenciam, valorizando portanto a liberdade de consciência, a tolerância e a pluralidade das crenças, como algo saudável e desejável.

O Espiritismo oferece elementos de mudança do comportamento face à “cultura de consumo” da atualidade. Tal tipo de cultura é organizada como “vitrine social”, na qual os signos (“marcas de consumo”) simulam “qualidades estéticas, traços de personalidade, estilo de vida e valores morais”, que não apenas reproduzem o ciclo da economia capitalista como também constituem mundos sociais de aparência, sem valores éticos de profundidade.

No dizer de Kardec “a importância dada aos bens terrenos está sempre em razão inversa da fé na vida futura”. (Evangelho Segundo o Espiritismo, Kardec, 1994:06) Neste caso, o Espiritismo ao descrever, demonstrar, explicar e esclarecer, por meio da mediunidade, a vida futura, suas nuanças, a relação com a vida presente, o estado do ser humano espiritual, vivendo e agindo após a morte física; torna-se este conhecimento, convertido em prática social, um poderoso agente de transformação dos valores, crenças, estilos de vida, hábitos e comportamentos sociais.

Pelo que vimos, o Espiritismo em sua abrangência de abordagem das questões contemporâneas, sócio-espirituais, não dissocia o plano material do espiritual. Ao contrário, os estuda como sendo níveis ou aspectos de uma mesma realidade, contínua, interdependente, histórico-sócio-espiritual, evolutiva e mantida em processo de integração e desenvolvimento pelas Leis que regem a vida universal.



Bibliografia

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KARDEC, Allan. O Que é o Espiritismo, Rio de Janeiro, Ed. Feb, 1994.

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