Caridade segundo o Espiritismo é o
exercício do verdadeiro amor (puro, incondicional, sem interesse de qualquer
recompensa) e ao mesmo tempo um dever de cada indivíduo para com os demais, em
todas as circunstâncias. É, portanto, uma ação (a prática do sentimento de
amor) efetiva, que indo além da interpretação que comumente se lhe atribui, na
qual seu escopo se restringe à benevolência material ou ao sentimento de
piedade em favor de alguém que esteja em situação de inferioridade em relação
àquele que o pratica. A teorização basilar da interpretação espírita acerca da
caridade parte do estudo da Lei de Justiça, amor e caridade em O Livro dos
Espíritos e do capítulo Fora da Caridade não há salvação em O Evangelho segundo
o Espiritismo, ambos de autoria de Allan Kardec. Nesse contexto, a caridade se
configura como a síntese do todo o Evangelho de Jesus e a mais sublime virtude
moral que conduz o Espírito à perfeição espiritual.
O termo caridade é o
aportuguesamento do latim caritas, que por sua vez deriva do grego chàris. Na
Grécia Antiga, significava graça, num sentido aproximado ao que hoje chamamos
de carisma. Sua versão latina ganhou a conotação de amor, da qual deriva também
carinho, ou seja, sentimento de afeto, bem-querer — uma das aplicações da
palavra ágape. Como o uso do vocábulo amor iria mais tarde se confundir
vulgarmente com a ideia de paixão e de atração carnal, o termo caridade
emancipou-se, às vezes sendo referido também como amor platônico (que
representa a ideia original de amor puro, fundado na virtude em si), passando a
ser interpretado como verbo, ação, exercício daquele sentimento de amor
desinteressado, em que, ser caridoso significa agir com total bondade e
absoluto desinteresse que não fazer o bem, em razão de se considerar o próximo
como alguém importante, caro — tal a interpretação espírita.
Nos tempos modernos, caridade
ganhou conotações mais estreitas, sendo normalmente associada à prática de
auxílio material, sinônimo de beneficência — facilmente confundida com esmola,
donativo ou benefício qualquer. Essa associação também permite entender
caridade como sentimento de piedade, compaixão, misericórdia, em que se desenha
sempre um quadro de inferioridade (física, social, moral etc.) daquele — o
carente — que está na condição de receber a caridade. Esta fria versão de
caridade, portanto, difere e muito da sua essência original, já que admite o
seu emprego pelo simples ato de distribuição de um benefício qualquer sem a
menor ligação afetiva entre o doador e o carente.
Caridade na Codificação Espírita
Segundo a Codificação Espírita,
caridade é uma das Leis Naturais, ao lado da justiça e do amor, como
encontramos no capítulo XI, da Parte Terceira de O Livro dos Espíritos:
"Lei de justiça, de amor e de caridade", onde encontramos a síntese
de seu significado de acordo com a espiritualidade:
Qual o verdadeiro sentido da palavra caridade, como a entendia Jesus?
"Benevolência para com todos, compaixão para as imperfeições dos
outros, perdão das ofensas." O Livro dos Espíritos, Allan Kardec - Questão
886
Esta lei é, então, o sumo do
Mandamento Cristão e da Boa Nova, ou seja, o Evangelho trazido por Jesus, a
segunda grande revelação divina aos homens na Terra, como bem definiu o
codificador espírita:
O amor e a caridade são o
complemento da lei de justiça, pois amar o próximo é fazer a ele todo o bem que
nos seja possível e que desejáramos nos fosse feito. Tal o sentido destas
palavras de Jesus: "Amem-se uns aos outros como irmãos". Segundo
Jesus, a caridade não se reduz à esmola, abrange todas as relações em que nos
achamos com os nossos semelhantes, sejam eles nossos inferiores, nossos iguais,
ou nossos superiores. Ela nos indica a indulgência, porque dela nós mesmos
precisamos, e nos proíbe de humilhar os desafortunados, contrariamente ao que
se costuma fazer. Apresente-se uma pessoa rica e todas as atenções e
deferências lhe são dispensadas. Se for pobre, toda gente como que entende que
não precisa preocupar-se com ela. No entanto, quanto mais lastimosa seja a sua
posição, tanto maior cuidado devemos pôr em lhe não aumentarmos o infortúnio
pela humilhação. O homem verdadeiramente bom procura elevar, aos seus próprios
olhos, aquele que lhe é inferior, diminuindo a distância que os separa. O Livro
dos Espíritos, Allan Kardec - Comentário à questão 886
Na concepção espírita, a
beneficência — auxílio material — é apenas uma das infinitas formas de se
praticar a caridade e tanto mais benéfica será se for praticada em paralelo aos
esforços de retirar o indivíduo carente de sua condição de inferioridade.
"Condenando-se a pedir
esmola, o homem se rebaixa física e moralmente: Embrutece-se. Uma sociedade que
se baseie na lei de Deus e na justiça deve prover à vida do fraco, sem que haja
humilhação para ele. Deve assegurar a existência dos que não podem trabalhar,
sem lhes deixar a vida à mercê do acaso e da boa vontade de alguns." O
Livro dos Espíritos - Questão 888
Observando esse critério (libertar
o ser carente dessa condição), a Doutrina Espírita convida-nos à prática desse
tipo de caridade, assim como lemos na comunicação do Espírito São Vicente de
Paulo:
"Não; o que merece reprovação não é a esmola, mas a maneira como habitualmente é dada. O homem de bem, que compreende a caridade de acordo com Jesus, vai ao encontro do desgraçado, sem esperar que este lhe estenda a mão.
A verdadeira caridade é sempre bondosa e benévola; está tanto no ato, como na maneira como é praticado. Duplo valor tem um serviço prestado com delicadeza. Se for com arrogância, pode ser que a necessidade obrigue quem o recebe a aceitá-lo, mas o seu coração pouco se comoverá.
Lembrem-se também de que, aos olhos de Deus, a ostentação tira o mérito ao benefício. Disse Jesus: que a tua mão esquerda não saiba o que a direita der. Por essa forma, ele lhes ensinou a não sujar a caridade com o orgulho.
Deve-se distinguir a esmola, propriamente dita, da beneficência. Nem sempre o mais necessitado é o que pede. O temor de uma humilhação detém o verdadeiro pobre, que muitas vezes sofre sem se queixar. A esse é que o homem verdadeiramente humano sabe ir procurar, sem ostentação.
Amem-se uns aos outros, eis toda a lei, lei divina, mediante a qual Deus governa os mundos. O amor é a lei de atração para os seres vivos e organizados. A atração é a lei de amor para a matéria inorgânica.
Não esqueçam nunca que o Espírito
— qualquer que sejam o grau de seu adiantamento, sua situação como reencarnado,
ou na erraticidade — está sempre colocado entre um superior, que o guia e
aperfeiçoa, e um inferior, para com o qual tem que cumprir esses mesmos
deveres. Então, sejam caridosos, praticando não só a caridade que os faz dar
friamente o óbolo que tiram do bolso ao que ousa pedir a vocês, mas a que leve
ao encontro das misérias ocultas. Sejam indulgentes com os defeitos dos
semelhantes. Em vez de dedicarem desprezo à ignorância e ao vício, instruam os
ignorantes e moralizem os viciados. Sejam brandos e benevolentes para com tudo
o que seja inferior. Sejam para com os seres mais ínfimos da criação e terão
obedecido à lei de Deus." São Vicente de Paulo, O Livro dos
Espíritos - Questão 888-b
A virtude da caridade foi
argumentada em profundidade no livro O Evangelho segundo o Espiritismo,
capítulo XV, intitulado "Fora da Caridade não há salvação". Aqui, o
mandamento do Cristo (Amar a Deus, de todo o coração, e amar ao próximo como a
si mesmo) é lembrado como a melhor exemplificação para a prática da caridade,
que, como a mais elevada das virtudes, é então colocada como contraponto ao
egoísmo — que a mais nociva das imperfeições morais... Também traz a
transcrição do memorável texto do Novo Testamento em que o apóstolo Paulo
explana sua visão sobre essa virtude ("Ainda quando eu falasse todas as
línguas dos homens e dos anjos… sem caridade, tudo isso de nada me
serviria…"). No item 8 deste mesmo capítulo, Kardec discorre sobre a
questão elementar que serviu de inspiração para que fosse cunhada a máxima
"Fora da caridade não há salvação": contrapondo-se ao Espiritismo, a
igreja católica pregava o dogma da necessidade de as almas humanas se submeterem
aos sacramentos católicos a fim de alcançarem o paraíso eterno, donde
promulgavam "Fora da igreja não há salvação"; em resposta a essa
sentença, a Doutrina Espírita vem propor um critério diferente: "Fora da
caridade não há salvação" — que é comumente disseminado pelo Movimento
Espírita como uma espécie de lema ou slogan espírita. O capítulo se encerra com
uma mensagem espiritual recebida em 1860 e assinada pelo Espírito Paulo, o
apóstolo:
"Meus filhos, na máxima: Fora da caridade não há salvação, estão determinados os destinos dos homens, na Terra e no céu; na Terra, porque à sombra dessa bandeira eles viverão em paz; no céu, porque os que a houverem praticado acharão graças diante do Senhor. Essa divisa é o facho celeste, a luminosa coluna que guia o homem no deserto da vida, encaminhando-o para a Terra Prometida. Ela brilha no céu, como auréola santa na cabeça dos eleitos, e, na Terra, se acha gravada no coração daqueles a quem Jesus dirá: Passem à direita, benditos de meu Pai. Reconhecerão a eles pelo perfume de caridade que espalham em torno de si. Nada traduz com mais exatidão o pensamento de Jesus, nada resume tão bem os deveres do homem, como essa máxima de ordem divina. O Espiritismo não poderia provar melhor a sua origem, do que apresentando esse ditado como regra, por isso que é um reflexo do mais puro Cristianismo. Levando-a por guia, nunca o homem se transviará. Assim, meus amigos, dediquem-se a estudar o sentido profundo e as consequências dessa máxima, a descobrir por si mesmos, todas as aplicações. Submetam todas as suas ações ao uso da caridade e a consciência os responderá. Ela não só evitará que pratiquem o mal, como também fará que pratiquem o bem, pois uma virtude negativa não basta: é necessária uma virtude ativa. Para fazer-se o bem, sempre se torna preciso a ação da vontade; para se não praticar o mal, basta as mais das vezes a inatividade e a despreocupação.
Meus amigos, agradeçam a Deus por
ter permitido que pudessem gozar a luz do Espiritismo. Não é que somente os que
a possuem tenham de ser salvos; é que, ajudando-lhes a compreender os ensinos
do Cristo, ela faz de vocês melhores cristãos. Portanto, esforcem-se para que
os irmãos, observando-os, sejam induzidos a reconhecer que verdadeiro espírita
e verdadeiro cristão são uma só e a mesma coisa, dado que todos quantos
praticam a caridade são discípulos de Jesus, independentemente da seita a que
pertençam." Paulo, O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec - Cap.
XV, item 10
Na Revista Espírita, Kardec certa
vez classificou a caridade em duas categorias, a saber: caridade beneficente e
caridade benevolente. Vejamos sua argumentação a respeito:
O campo da caridade é muito vasto;
compreende duas grandes divisões que, em falta de termos especiais, podem
designar-se pelas expressões Caridade beneficente e caridade benevolente.
Compreende-se facilmente a primeira, que é naturalmente proporcional aos
recursos materiais de que se dispõe; mas a segunda está ao alcance de todos, do
mais pobre como do mais rico. Se a beneficência é forçosamente limitada, nada
além da vontade poderia estabelecer limites à benevolência." Revista
Espírita - dez-1868: "Sessão anual comemorativa do Dia dos Mortos"
Ver Fora da Caridade não há
salvação.
Além da codificação kardequiana, a
caridade é objetivamente tratada por diversos autores e em diversas obras. No
livro Vinha de Luz, Emmanuel descreva a "Caridade essencial":
Antes, porém, da caridade que se
manifesta exteriormente nos variados setores da vida, pratiquemos a caridade
essencial, sem o que não poderemos efetuar a edificação e a redenção de nós
mesmos. Trata-se da caridade de pensarmos, falarmos e agirmos, segundo os
ensinamentos do Divino Mestre, no Evangelho. É a caridade de vivermos
verdadeiramente n'Ele para que Ele viva em nós." Vinha de Luz, (Emmanuel)
Chico Xavier - Cap. 110: "Caridade essencial"
Referências
O Livro dos Espíritos, Allan Kardec - ebook
O Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec - ebook.
Revista Espírita, Allan Kardec - especialmente o artigo "Sessão anual comemorativa do Dia dos Mortos" da edição de dezembro de 1868 - ebook
Vinha de Luz, (Emmanuel) Chico Xavier - Editora FEB.
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