«Minha primeira infância destacou-se pelo traço de infortúnio, que foi certamente a consequência da má atuação do meu livre arbítrio em existências passadas. E uma das razões de tal infortúnio foi a lembrança, muito significativa, que em mim permanecia, da última existência que tivera. Desde os três anos de idade, segundo informações de minha mãe e de minha avó paterna, pois com esta vivi grande parte da infância, neguei-me a reconhecer em meus parentes, e principalmente em meu pai, aqueles a quem eu deveria amar com desprendimento e ternura. Sentia que o meu círculo de afinidades afetivas não era aquele em que eu agora vivia, pois lembrava-me do meu pai, da passada existência terrena, a quem muito amava, pedindo insistentemente, até muito tempo mais tarde, para que me levassem de volta para a casa dele. Tratava-se do Espírito Charles, a quem eu via frequentemente em nossa casa, conforme explicações do capítulo anterior. Eu o descrevia com minúcias para quem me quisesse ouvir, mas fazia-o por entre lágrimas, qual a criança perdida entre estranhos, sentindo, dos três aos nove anos de idade, uma saudade torturante desse pai, saudade que, nos dias presentes, se não mais me tortura tanto, também ainda se não extinguiu do meu coração. Se as suas aparições eram frequentes, eu me sentia amparada e mais ou menos serena, pois ele me falava, conversávamos, embora jamais eu me recordasse do que tratavam as nossas conversações, tal como acontecia com a outra entidade, Roberto. Mas, se as aparições escasseavam, advinha amargor insuportável para mim, fato que tornou a minha infância um problema tanto para mim como para os meus.
Até aos nove anos de idade não me lembro de que concordasse, de boamente, em pedir a bênção a meu pai, o da atual existência. Negava-me a fazê-lo porque — afirmava, convicta e veemente — «Esse não é o meu pai!» E entrava a explicar a minha mãe, que tentava contornar a situação, a ele próprio e àminha avó paterna, que foi o anjo bom da minha infância, como era a personagem que dominava as minhas recordações.
Detalhes singulares viviam em meus pensamentos por essa época: Referindo-me à «casa de meu pai», eu descrevia um saguão que me era muito familiar, de tijolos de cerâmica, coloniais, onde a «minha carruagem» entrava para eu subir ou descer. Havia aí uma escada interna por onde eu subia para os andares superiores — narrava eu, desfeita em prantos, descrevendo a casa a fim de que me levassem novamente para lá — e o corrimão da mesma, com o balcão lavrado em obra de talha, pintado de branco e com frisos dourados, mostrava o motivo de uma corsa perseguida por um cão e pelo caçador em atitude de atirar com a espingarda. O caçador mais tarde eu o compreendi — era tipo holandês do século 15. No entanto, jamais me referia a minha mãe de então, isto é, da existência passada, o que leva à suposição de que eu teria sido mais afim com o pai, visto que foi o sentimento consagrado a ele que venceu o tempo, dominando até mesmo a dificuldade de uma reencarnação. Mas, se jamais me referia a minha mãe de outrora, lembrava-me muito bem dos vestuários que provàvelmente foram por mim usados, e graças a tal particularidade mais tarde foi possível levantar a época em que se teria verificado a minha última existência terrestre:
Época de Allan Kardec, de Vitor Hugo, de Frederico Chopin, ou seja, mais ou menos de 1830 a 1870 (rei¬nado de Luís Filipe e Império de Napoleão, na França).
Á hora do banho, à tarde, freqüentemente eu exigia de minha avó certo vestido de rendas negras com grandes babados e forros de seda vermelha, “muito armado” e amplo, inexistente em nossa casa, e que eu jamais vira. Pedia as mulheres (eu dizia “luvas sem dedos”, coisa que também jamais vira); pedia a mantilha (xale) e a carruagem para o passeio, porque o meu pai esperava para sairmos juntos». Admirava-me muito de não encontrar nada disso, assim como também os quadros que viviam em minhas lembranças, quadros de grandes proporções, os quais eu procurava pela casa toda a fim de revê-los, sem, todavia, encontrá-los, e que, certamente, seriam coleções de arte ou pinacoteca dos antepassados da família da última existência. Reparava então, decepcionada, as paredes, muito pobres, da casa de minha avó ou da de meus pais, e, subitamente, não sei que horrorosas crises advinham para me alucinar, durante as quais verdadeiros ataques de nervos, ou o quer que fôsse, e descontroles sentimentais indescritíveis, uma saudade elevada a grau super-humano, me levavam quase à loucura. Passava dias e noites em choro e excitações, que perturbavam toda a família, e o motivo era sempre o mesmo: o desejo de regressar à «casa de meu pai», de onde me sentia banida, a saudade angustiosa que sentia dele e de tudo o mais de que me reconhecia separada. Em tais condições, não podia folgar com as outras crianças e jamais senti prazer num divertimento infantil. Em verdade não encontrei jamais, desde a infância, satisfação e alegria em parte alguma. Fui, portanto, uma criança esquiva, sombria, excessivamente séria, criança sem risos nem peraltices, ator-mentada de saudades e angústias, imagem, na Terra, daqueles réprobos do suicídio descritos nos livros especificados. O lenitivo para tão anormal situação apenas advinha dos trabalhos escolares, pois muito cedo comecei a frequentar a escola, e do amor com que me assistia minha avó paterna, já mencionada, a qual, não obstante os seus pendores materialistas, me ensinou a orar muito cedo, suplicando a proteção de Maria Santíssima.
Certo dia, aos sete anos de idade, lembro-me ainda de que, ao me tentarem obrigar a pedir a bênção a meu pai, recusei e expliquei, veemente:
— «Esse não é o meu pai! O meu usa um paletó muito comprido (sobrecasaca ou coisa semelhante), com uma capinha dos lados (trajes masculinos do tempo de Luís Filipe 1, da França); um chapéu muito alto e cabelos «meio brancos» (grisalhos) e mais compridos. E usa bigodes grandes. Ele é «um pouco velho»... não é moço como «esse aí, não!... »
Tal franqueza, que para mim representava uma grande dor, para os demais nada mais seria do que petulância e desrespeito. Valeu-me, nesse dia, boa dose de chineladas ministradas por meu pai, o que muito me surpreendeu e fêz que me considerasse mártir, pois fui castigada desconhecendo o motivo por que o era, visto que, sinceramente, o pai por mim reconhecido era o Espírito que frequentemente eu via e do qual me lembrava com inconsolável saudade. Na verdade, eu necessitava mais de tratamento físico, com vistas ao sistema nervoso e psíquico, visando ao suprimento de fluidos balsamizantes, para o traumatismo sediado no perispírito, do que de repreensões e castigos corporais, cujas razões eu não compreendia. O castigo de que, realmente, eu necessitava ali estava, na tortura de conservar a lembrança de um pai amado de uma passada existência, quando ali estava o pai do presente requerendo igual sentimento e respeito idêntico, mas apenas temido e não propriamente amado, e no qual sempre deparei a severidade, útil e muito necessária à minha situação atual.
No entanto, bastaria uma série de passes bem aplicados, frequência às reuniões de estudo evangélico num Centro Espírita bem orientado e preces, para que tão anormal situação declinasse.
Se, como é evidente, o fato de recordar existências passadas é, antes de mais nada, uma faculdade, aquele tratamento tê-la-ia adormecido em mim, desaparecendo as incomodativas explosões da subconsciência, ou talvez fôsse mesmo necessária, ao meu reajustamento moral-espiritual, a conservação das ditas lembranças, e por isso elas foram conservadas. Mas o caso é que, posteriormente, eu mesma, depois de bem norteadas as minhas faculdades supranormais, tratei, com meus Guias Espirituais, de algumas crianças assim anormalizadas, conseguindo resolver terríveis impasses de natureza semelhante. Mas apesar de meu pai se ter convertido à crença espírita antes mesmo do meu nascimento, e certamente porque ao meu espírito seria necessário que tais lembranças não fôssem banidas da minha consciência, esse tratamento não foi tentado e eu tive de vencer a primeira infância rudemente torturada por uma situação inteiramente anormal, dolorosa.
Mais tarde, atingindo os nove anos de idade, é que esse tratamento naturalmente se impôs e, com os tradicionais passes, terapêutica celeste que balsamizou minhas amarguras de então, sobrevieram tréguas e consegui mais serenidade para. a continuação da existência.
Yvonne do Amaral Pereira
Trecho do capítulo 3, Reminiscência de Vidas Passadas, do livro “Recordações da Mediunidade”, de Yvonne do Amaral Pereira.
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