sábado, 24 de março de 2012

Gabriel Delanne, por Canuto Abreu


Mentalidade politécnica, afeiçoada desde cedo aos estudos exatos, às pesquisas cientificas, às observações frias, às deduções rigorosas, ao horror do erro, da ilusão e da fraude — foi o chefe supremo da parte experimental do Espiritismo, a qual deu o maior desenvolvimento ainda não suplantado.

Ninguém reuniu até hoje mais vasto e variado repertório de fenômenos espiríticos. Competente, perito, cioso da sua responsabilidade, dedicou a existência, de 1883 a 1926, ininterruptamente, à propaganda pelos fatos. A veneração que o mundo espírita lhe tributava conquistou-a ele pelo merecimento, numa luta ingente contra os numerosos opositores que a Doutrina levantava por onde ele a vulgarizava.

Para fazer a prova de que a alma humana existe durante a vida e depois da morte, não empregou jamais uma palavra de religião ou de filosofia, e assim fez notar (1). A seu ver, “os argumentos metafísicos só convencem a convencidos; são atos de fé, ou de logomaquia, desprovidos de qualquer fundamento real” (2).

Fez uma escola. Compreendendo nitidamente a tarefa que lhe coubera na consolidação da Doutrina, fez discípulos que vêm acompanhando os progressos da ciência, em todas as suas províncias, no empenho de trazer para o Espiritismo todos os elementos úteis à sua evolução. Para esta escola “c'est Ia recheche expérimentale qui, en avançant lentement mais progressivement, dans l'explication des choses aboutira nécessairement un jour à rendre démontrable incontestablement à tous ce qui n'est encore que présumable sur I'apparence des faits”. (Andry-Bourgeois, in Révue Métapsychique n.º 2, 1926). (3)

Minha retentiva é demasiado precária. Esqueço facilmente tudo. Fatos importantes dissipam-se, esfumam-se, esvaecem. E graças a Deus! Mas, não me olvidei nunca daquela tarde invernosa de novembro, em que penetrei a primeira vez o Parque de Montmorancy. Um chalé à direita entre árvores, a hera trepando pelas paredes. Vidraças fechadas e cortinas amarelas. Vozes lá dentro. Minha pancada hesitante e receosa. Mademoiselle que abre e vai anunciar-me ao apóstolo, deixando-me ali diante daquele homem forte, gordo, ar carregado e perscrutador, que era o Comandante Darget (4). E meu nome declinado na sala à esquerda por voz venerável:

— “Monsieur le docteur Abreu, donnez-vous la peine d'entrer”. (5)

E diante de mim, que entro timidamente, um homem de estatura pequena, curvado sobre bengalas, rosto delicado, cabelos grisalhos e rentes, frontal de grandes entradas, nariz fino e meio curvo, bigode amarelado de fumo e em desalinho sobre um sorriso acolhedor e permanente. Tenta avançar cambaleante. Mas, apoiado já em meus braços, deixa-se cair na poltrona, enquanto Mademoiselle lhe recobre com a manta azul, que rolara, as pernas trêmulas, os pés inchados e metidos em sapatões de lã.

Tenho ainda gravado na mente o seu olhar: o olho direito mais claro que o esquerdo, as pupilas dilatadas, a nuvem da cegueira sobre a íris.

Reminiscência!

* * *

Que hei de transcrever aqui do meu velho caderno de viagem, tão cheio de coisas?

Nasceu Delanne em Paris, no dia 23 de março de 1857. Seu pai, Alexandre Delanne, falecido em 1901, era comerciante e frequentava Allan Kardec, em cujos funerais, à beira do túmulo, falou em nome dos espíritas dos centros longínquos. Sua progenitora, Alexandrina Delanne, foi um dos médiuns do fundador do Espiritismo e faleceu nonagenária (1801-1894), conservando lucidez de espírito e firme crença até o derradeiro alento.

Delanne recebeu, portanto, educação espírita no lar.

— Conheceu Kardec?
— Perfeitamente, respondeu-me. Acariciava-me e, duma feita, pondo-me ao joelho e abraçando-me pela cintura, profetizou que eu seria um sacerdote do Espiritismo. Não fui bem um “sacerdote”, mas tenho a presunção que fiz o possível em minhas forças para bem servir à Doutrina, no setor que me coube.

— E que vem dilatando e iluminando.
— Não. Nada tenho dilatado. Tudo que há, é de Kardec. Apenas tenho feito constatações. Mostrei-as em meus livros e demonstro-as na prática diária. Nada acrescento. Penso que não virá tão cedo a este mundo quem possa dilatar e iluminar mais o que nos legou o Mestre.

— A propósito: sua opinião sobre a obra de Roustaing?
— Você fala de Roustaing, de Bordéus? (6)

— Sim, do autor de “Os Quatro Evangelhos”.
— Um grande e sincero adepto do Espiritismo. Discordo inteiramente do ponto de vista que adotou nessa obra. Acho pouco prováveis os seus fundamentos e completamente desnecessários.

— No Brasil, é obra das mais estimadas.
— Questão de afinidade de sentimentos. Os países da antiga colonização espanhola possuem alma mística e religiosa (7). Todas as doutrinas de fé aí podem ter notável crescimento. Na França, onde o povo é mais céptico, Roustaing não teve muitos adeptos e penso que está esquecido. Já o leu você?

— Sim. Como aplicação do Espiritismo, acho-a digna de meditação. Quero, entretanto, registrar sua valiosa opinião.
— Dou-a com sinceridade e não é a primeira vez que me interpelam a respeito. Não tenho, porém, competência para opinar. É um trabalho de fé. É uma obra de espíritos. Não discuto, se é verdade ou não, o que se revela sobre Jesus. A mim se me afigura irreal o Cristo que Roustaing descreve. O assunto, aliás, não me interessa. Penso que não temos base de certeza para optar entre Cristo dos Evangelhos e da tradição, e o Jesus de Roustaing.

— Mas, sua opinião sobre Jesus?
— Um chefe espiritual.

* * *

Delanne está nos seus livros e nas suas revistas. Não diferia como homem. Mentalidade positivista, sua obra é positivista. Moço ainda, com 26 anos, abandonou a profissão de engenheiro, em que principiara, para se dedicar integralmente á propaganda do Espiritismo. Paupérrimo, quando o conheci vivia dos editores de seus livros, dos assinantes de sua revista e dos amigos. Paralítico e cego. Até o fim, perfeitamente lúcido. Seu último trabalho foi o discurso que ditou e foi lido na sessão inaugural do Congresso Espírita Internacional, em 7 de setembro de 1925 (8). Nesse discurso, canto do cisne, ele se mostra, talvez pela primeira vez, o espírita completo: deísta, animista, reencarnacionista. “Appelons sur nos travaux la bénédiction divine, puisque c'est en elle que reside toute puissance, toute science, toute justice, toute bonté et tout amour”. (9)

Desencarnou em 15 de fevereiro de 1926 como um justo, rodeado de amigos e discípulos, na mesma casa onde o conheci.


NOTAS

(1) “Les Apparitions materialisées”, T. 1º, p. 2.
(2) Op. Cit. T. 2º, p. 824.
(3) "Esta é uma pesquisa experimental que, avançando lenta mas progressivamente, oferece, necessariamente, explicações sobre as coisas, que um dia se tornarão incontestavelmente demonstráveis em tudo o que ainda é apenas presumível sob a aparência dos fatos." (Nota do PENSE).
(4) O pesquisador espírita comandante Louis Darget (1847-1923), de Tours, amigo de Gabriel Delanne e Léon Denis, realizou pesquisas sobre os raios V (eflúvios ódicos) e fotografias dos espíritos. Foi pioneiro nas pesquisas de efluviografia e captação, em chapas fotográficas, da configuração dos eflúvios ódicos. Obteve várias fotografias de eflúvios humanos e de fotografias do pensamento, antecipando as experiências com a Kirliangrafia. Publicou diversos artigos em revistas espíritas sob o pseudônimo de Comandante Tégrad. (Nota do PENSE).
(5) "Senhor doutor Abreu, tenha a bondade de entrar". (Nota do PENSE).
(6) Jean-Baptiste Roustaing (1805-1879), advogado e líder espírita de Bordéus, França, contemporâneo de Allan Kardec, publicou a obra Os Quatro Evangelhos (1866), compilação em três volumes de mensagens mediúnicas obtidas pela médium belga Émilie Collignon. Obra religiosa, de nítida influência católica, fundamenta-se na tese de que Jesus era um agênere, não possuía corpo físico, mas um corpo fluídico, causando o primeiro cisma no Espiritismo francês. No Brasil, a Federação Espírita Brasileira (FEB) adotou a obra de Roustaing, provocando assim uma cisão quase irreversível no movimento espírita brasileiro. (Nota do PENSE).
(7) Foi assim que ele falou.
(8) O 3º Congresso Internacional de Espiritismo foi realizado em Paris, França, de 6 a 13 de setembro de 1925, sob a coordenação de Jean Meyer (1855-1931), pesquisador e escritor espírita suíço. Devido à dificuldade de locomoção, Gabriel Delanne não pôde comparecer ao evento. Atendendo a pedidos de Meyer e do espírito Jerônimo de Praga, Léon Denis, mesmo em idade avançada, participa do congresso, do qual foi presidente de honra.
(9) “Compte rendu du Congres de 1925”, edição Jean Meyer, p. 25.
"Nós consideramos nosso trabalho uma bênção divina, pois é aí que reside toda a potência, toda ciência, toda justiça, toda bondade e todo amor." (Nota complementar do PENSE).


Silvino Canuto Abreu (1892-1980), erudito, tradutor e escritor espírita, profundo conhecedor da história do Espiritismo, adquiriu vários documentos de Allan Kardec quando esteve na França, antes da II Guerra Mundial. Era formado em farmácia, medicina e direito. Foi fundador e presidente da Associação Paulista de Homeopatia. Escreveu os livros: O Livro dos Espíritos e sua Tradição Histórica e Lendária; O Evangelho por Fora; Bezerra de Menezes: Subsídios para a História do Espiritismo no Brasil até o ano de 1895; O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec - 1857, edição bilingue.



Fontes: “Metapsíquica” – revista bimestral da Sociedade Metapsíquica de São Paulo (SMSP), ano I - nº 1 - abril/maio de 1936. Texto finalizado em 1º de julho de 1927.

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