Entrevistador: Em torno de nós no seu monastério há muitos cartazes e slogans lembrando às pessoas para serem plenamente conscientes, para retornar ao seu corpo e respiração, e para lembrar sua natureza humana. Nas horas das refeições, todos param de comer quando o relógio chama para a prática de poucos minutos em plena consciência. Por que é tão importante retornar a esta prática básica de respiração, corpo e ser?
Thich Nhat Hanh: Meditar significa voltar à casa do seu ser. Então você sabe como tomar conta das coisas que acontecem ao seu redor. Todos os exercícios de meditação têm por objetivo levar você de volta para sua casa verdadeira, para você mesmo. Sem restaurar sua paz e calma e ajudar o mundo a restaurar a paz e a calma, você não irá longe na prática.
E: Qual a diferença entre seu verdadeiro eu, a casa que você retorna, e como normalmente pensamos de nós mesmos?
Thay: O verdadeiro eu é o não-eu, a consciência que o eu é feita apenas de elementos não-eu. Não há separação entre o eu e o outro, e tudo é interconectado. Uma vez que você está consciente disso você não mais é pego na idéia que você é uma entidade separada.
E: O que acontece a você quanto percebe que a verdadeira natureza do eu é o não-eu?
Thay: Produz insight. Você sabe que a sua felicidade e sofrimento dependem da felicidade e do sofrimento dos outros. Este insight te ajuda a não fazer coisas erradas e que levarão sofrimento a você e aos outros. Se você ajudar seu pai a sofrer menos, tem uma chance de sofrer menos. Se você é capaz de ajudar seu filho a sofrer menos, você como pai, sofrerá menos. Graças à conscientização que não há um eu separado, você percebe que a felicidade e sofrimento não são assuntos individuais. Você vê a natureza da interconexão e sabe que para se proteger tem que proteger os seres humanos ao seu redor.
Este é o objetivo da prática, tomar consciência do não eu e da interconexão. Esta não é apenas uma idéia ou algo para se entender intelectualmente. Você tem que aplicar na sua vida diária. Portanto você precisa de concentração para manter esse insight do não-eu de forma a se guiar em cada momento. Hoje, cientistas são capazes de ver a natureza do não-eu no cérebro, no corpo, em tudo. Mas o que eles encontraram não os ajuda, porque não podem aplicar esse insight na vida diária. Portanto eles continuam a sofrer. É por isso que nós falamos em concentração no Budismo. Se você tem o insight do não-eu, se você tem o insight da impermanência, deveria transformar esse insight em concentração que você mantém viva ao longo do dia. Portanto o que você diz, pensa e faz a partir daí será luz dessa sabedoria e você evitará cometer erros e criar sofrimento.
E: Portanto a prática da plena consciência é tentar manter o insight do não-eu e a interconexão o tempo todo?
Thay: Sim, exatamente.
E: Nós seres humanos dizemos que acima de tudo queremos amor. Nós queremos dar amor, e ser amados. Sabemos que o amor é o remédio que cura doenças. Mas como achamos amor em nosso coração? Porque freqüentemente não conseguimos?
Thay: Amor é a capacidade de tomar conta, proteger, nutrir. Se você não é capaz de gerar essa energia em direção a você, se não é capaz de tomar conta de você mesmo, de se nutrir, de se proteger, é muito difícil tomar conta de outra pessoa. Nos ensinamentos budistas, é claro que o amor próprio é a base do amor aos outros. Amor é a prática. Amor é verdadeiramente uma prática.
E: Porque não nos amamos?
Thay: Temos o hábito no nosso interior de olhar para a felicidade em outro lugar que não no aqui e agora. Podemos perder a capacidade de perceber que a felicidade é possível no aqui e agora, que temos todas as condições suficientes para ser felizes agora. A energia de hábito é acreditar que a felicidade não é possível agora, e que temos que correr ao futuro para obter mais algumas condições para felicidade. Isso não nos deixa nos estabelecer no momento presente, entrar em contato com as maravilhas da vida que estão disponíveis aqui e agora. Por isso a felicidade não é possível.
Voltar ao momento presente, cuidar de si mesmo, tocar as maravilhas da vida que estão realmente disponíveis, isto já é amor. Amor é ser gentil consigo mesmo, ser compassivo consigo mesmo, gerar imagens de alegria, e olhar a todos com olhos de equanimidade e não-discriminação. Isto é algo para ser cultivado. Não-eu pode ser alcançado. Pode ser tocado lentamente. Esta verdade pode ser cultivada. Quando você descobre algo, no começo você só descobre parte disso. Se você continuar, você tem chance de descobrir mais. E finalmente você descobre a coisa toda.
Quando você ama, se seu amor é verdadeiro, você começa a ver que a outra pessoa é parte de você e você é parte dela. Nessa percepção já existe o não-eu. Se você pensar que sua felicidade é diferente da felicidade do outro, não viu nada do não-eu, e a felicidade não poderá ser obtida. Portanto, enquanto você progride no caminho do insight do não-eu, a felicidade trazida a você crescerá. Quando as pessoas se amam, a distinção, os limites, a fronteira entre elas se dissolve, e um deles se torna uno com a pessoa a quem ama. Não há mais ciúme ou raiva, por que se estiverem com raiva da outra pessoa, estarão com raiva de si mesmos. Por isso não-eu não é uma teoria, uma doutrina, ou uma ideologia, mas uma percepção que pode trazer muita felicidade.
E: E paz?
Thay: Paz é a ausência de separação, de discriminação.
E: Você é reconhecido pelos seus ensinamentos sobre comunidade, que no budismo é chamado Sangha*. Através de práticas tais como os 14 treinamentos de plena consciência da ordem do Interser, você define consciência de modo social e até político. Você ensina sobre técnicas de comunicação e o poder da escuta profunda e da fala amorosa. Por que você enfatiza a comunidade, o aspecto inter pessoal?
Thay: Você tem experiências na prática da paz, da alegria, e cura e assim ajuda outras pessoas. Você não pratica apenas como um indivíduo, porque percebe logo no caminho da prática que deveria praticar com a comunidade se quer que a transformação e cura aconteçam mais rapidamente. Isto é tomar refúgio na sangha. Partilhando a prática com outros, a energia da plena consciência, concentração e alegria são muito mais poderosas. Isto era o que o Buda gostava de fazer. A todo lugar que ia, muitos monásticos o acompanhavam, e era o modo que eles podiam aprender o seu modo de andar, sentar e interagir com as pessoas. Logo a comunidade começou a se comportar como um organismo, com todos engajados na mesma energia de paz, alegria, calma e irmandade. Ao mesmo tempo, todos na sangha falam pelo Buda, não só pelas suas palavras, mas pelos seus atos e pelo modo como tratam as pessoas. É por isso que o rei Prasanjit disse ao Buda: “Querido professor, cada vez que vejo sua comunidade de monges e monjas, tenho uma grande fé em você.” Ele queria dizer que a sangha é capaz de representar o Buda. O Buda com a sangha pode adquirir muitas coisas. Eu não acho que um professor possa fazer muito sem uma comunidade. É como um músico que não pode atuar sem um instrumento musical. A sangha é muito importante, o insight e a prática do professor podem ser vistos na sangha. Tem um efeito muito mais forte quando você partilha a prática e os ensinamentos como uma sangha.
E: Portanto para o Darma ser realmente poderoso devemos transformar não só a nós mesmos, mas em conseqüência, a sociedade?
Thay: Sim, é por isso que o budismo deveria ser sempre engajado. Não é desligando-se da sociedade que você pode realizar isto.
E: Você acha que uma razão para enfatizar a comunidade e a sociedade como uma prática é o terrível conflito que você viu no Vietnã? Ver uma sociedade destruída pela guerra aumentou sua preocupação com nossa vida em comunidade?
Thay: Acho que é verdade. É o insight que se adquire quando se está em contato com uma situação real. Mas ela também é enfatizada na tradição. Dizemos, “Tomo refúgio na sangha”, mas a sangha é feita de praticantes individuais. Portanto você tem que ter cuidado com você mesmo. De outro modo você não terá muito que contribuir com a comunidade porque não terá suficiente calma, nem paz, nem liberdade no seu coração. Por isso, de forma a construir uma comunidade, é necessário construir a você mesmo o mesmo tempo. A comunidade está em você e você está na comunidade. Vocês se interpenetram. Por isso eu enfatizo a criação de sanghas. Isto não significa que você negligencia sua própria prática. É tomando bom cuidado com sua respiração, seu corpo e seus sentimentos que você poderá construir uma boa comunidade.
(Parte de entrevista a Melvin McLeod para a revista Shambhala Sun – Março de 2006)
*Sangha (pali: saṅgha; sânscrito: saṃgha) é uma palavra em pali ou sânscrito que pode ser traduzida aproximadamente como "comunidade”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário