quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Espiritismo, Religiões e Fundamentalismo



Por Vinícius Lousada

É interessante observar a postura respeitosa de Allan Kardec com as crenças religiosas, inobstante ter o Espiritismo enfrentado, em seu período de luta, as manifestações mais fanáticas do clero, que, por sua vez, procurava diabolizar os ensinamentos dos Espíritos Superiores, tanto quanto a prática do diálogo criativo com os desencarnados, para o que a Ciência Espírita imprimiu segura metodologia e dignidade.

Nas respostas que delineava aos detratores do Espiritismo, Kardec não se descuidava das exigências da civilidade para se exprimir e, como excelente educador, buscava esclarecer a ignorância acerca dos princípios do Espiritismo e de sua proposta de regeneração da Humanidade com uma lógica irretorquível.

O Espiritismo, com Kardec, não se ocupa de questões dogmáticas, cultos ou manifestações exteriores, pois, na esteira do pensamento progressista do séc. XVIII, propõe a liberdade de pensamento e, por consequência, difunde o direito de cada um adorar a Deus como lhe aprouver, de tal forma que o indivíduo deveria atender as suas práticas espirituais em conformidade com a própria consciência, sobretudo porque segundo as máximas lecionadas pelos Espíritos, “Deus leva mais em conta a intenção que o fato”.[1]

Aliás, o mestre lionês não deixou de afirmar a presença dialógica da Doutrina dos Espíritos frente às variadas religiões, declarando que “O Espiritismo é um terreno neutro, sobre o qual todas as opiniões religiosas podem encontrar-se e se dar as mãos”.[2] Mais tarde, ensinara também que um resultado possível, ao qual levaria o conhecimento espírita, seria o fim dos antagonismos religiosos “quando todas as religiões reconhecerem que adoram o mesmo Deus sob diferentes nomes; que lhe concedem os mesmos atributos de soberana bondade e justiça; e que não diferem senão na forma de adoração”[3]. Vejamos se não temos aqui uma ideia precursora do diálogo inter-religioso que supera o ecumenismo exclusivista.

Portanto, a Doutrina dos Espíritos é uma filosofia que, atendendo as exigências da razão de seu tempo – cansada das superstições, discriminações e beligerâncias religiosas –, se apoia no Cristianismo do Cristo, fomentando a fraternidade e a paz entre os homens e as mulheres de diferentes credos ao estabelecer que a condição de felicidade na vida espiritual não está no ato de professar esta ou aquela religião, mas na prática da mais desinteressada caridade.

Numa leitura atenta dos textos kardequianos, vamos averiguar o que o Codificador compreendia pela finalidade da religião, opondo-se ao fanatismo, ao formalismo religioso e à hipocrisia. Em O Evangelho segundo o Espiritismo, encontramos o entendimento de que

“O objetivo da religião é conduzir a Deus o homem. Ora, este não chega a Deus senão quando se torna perfeito. Logo, toda religião que não torna melhor o homem, não alcança o seu objetivo. Toda aquela em que o homem julgue poder apoiar-se para fazer o mal, ou é falsa, ou está falseada em seu princípio. Tal o resultado que dão as em que a forma sobreleva ao fundo. Nula é a crença na eficácia dos sinais exteriores, se não obsta a que se cometam assassínios, adultérios, espoliações, que se levantem calúnias, que se causem danos ao próximo, seja no que for. Semelhantes religiões fazem supersticiosos, hipócritas, fanáticos; não, porém, homens de bem”.[4]

Logo, é de fácil percepção que as religiões deveriam colaborar com o processo evolutivo dos seus adeptos, estabelecendo em seus princípios e vivências fomentadas pela prática espiritual o aprimoramento intelecto-moral dos sujeitos, jamais se dobrando, como alternativa de fé, a interesses mesquinhos e transitórios.

A diversidade de religiões tem origem nas crenças em princípios específicos e dogmas particulares, nos quais cada uma ensina e faz a manutenção de seus artigos de fé ao longo de um tempo histórico e em determinadas circunstâncias étnicas, culturais, sociais e políticas.

Assim, a vivência religiosa pode ser calcada na fé raciocinada ou na cegueira absoluta. Levada ao excesso, a fé cega promove o fanatismo e as atitudes fundamentalistas porque, nessa ordem de coisas, cada seita pretende ser a dona exclusiva da verdade.

O fundamentalismo religioso é uma forma falsa de buscar a transcendência quando as religiões se tornam fechadas e se negam ao diálogo com outros pontos de vista. No fundamentalismo, os profitentes de determinada crença cerram as portas do coração ao entendimento possível com seus irmãos, outros filhos de Deus, vinculados ou não a diferentes manifestações de espiritualidade presentes no mundo.

Como diz o filósofo Leonardo Boff, num belo estudo sobre o tema, o fundamentalismo “representa a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista”. [5] Dessa forma, ele reflete inegável estreiteza intelectual cujas consequências funestas são a intolerância, a agressividade e, nas posturas extremadas, o terrorismo moldado em diversas faces.

Em contraposição às tendências fundamentalistas que grassam nalguns círculos religiosos, recordemo-nos da admoestação do Mestre de todos nós: “Quem não ama seu irmão e sua irmã, a quem vê, não é possível que ame a Deus, a quem não vê”.[6]

ESTUDANDO KARDEC:


A máxima – Fora da caridade não há salvação – consagra o princípio da igualdade perante Deus e da liberdade de consciência. Tendo-a por norma, todos os homens são irmãos e, qualquer que seja a maneira por que adorem o Criador, eles se estendem as mãos e oram uns pelos outros. Com o dogma – Fora da Igreja não há salvação –, anatematizam-se e se perseguem reciprocamente, vivem como inimigos; o pai não pede pelo filho, nem o filho pelo pai, nem o amigo pelo amigo, desde que mutuamente se considerem condenados sem remissão. É, pois, um dogma essencialmente contrário aos ensinamentos do Cristo e à lei evangélica.[7]


[1] Revista Espírita, fevereiro de 1862 - Resposta dirigida aos espíritas lioneses por ocasião do ano novo.

[2] Viagem Espírita em 1862 - item XI.

[3] Revista Espírita, outubro de 1868 - Doutrina de Lao-Tseu: Filosofia Chinesa.

[4] O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. VIII, item 10.

[5] BOFF, Leonardo. Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz: desafios para o século XXI. Petrópolis, RJ: 2009, p. 49.

[6] I Jo, 4:20.

[7] O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. XV, item 8.

Nenhum comentário:

^