O infinito na vida. — Visão microscópica e visão telescópica. — Geografia das plantas e dos animais; difusão universal da vida.
As considerações que precedem estabelecem uma dupla certeza e seriam mais que suficientes para questões ordinárias e puramente humanas; mas a Natureza não quis deixar aos homens o cuidado de explicar a obra-prima da criação. O Rei dos seres lançou um véu misterioso sobre esta prova sublime de sua onipotência, e reservou levantá-lo ele mesmo, a fim de confundir o orgulho dos homens, ao mesmo tempo que aumentasse a esfera de sua inteligência. Para chegar a este fim, antes que a ciência descobrisse as maravilhas de sua fecundidade prodigiosa, a Natureza colocou na mente daqueles que estudaram a noção da pluralidade dos mundos que uma só terra habitada não conviria nem à sua dignidade, nem à sua grandeza. Depois, deixou à ciência o cuidado de desenvolver esta ideia primitiva, permitindo ao homem penetrar no santuário de seu eterno poder. Enquanto os antigos, que podiam adorar a infinidade do Criador e se prosternar perante sua glória contemplando a imensidade da Terra, a riqueza de seu paramento e a variedade de suas produções, compreendiam, porém, quão pouco digna esta Terra seria, por si só, de saciar Seu olhar, e o quanto às maravilhas que a decoram estão abaixo da majestade divina, os modernos, por consequência do progresso das ciências, não deviam ficar reduzidos a encerrar essa majestade suprema num mundo onde começam a se sentir eles mesmos apertados, onde, graças a novos Pégasos, mais rápidos que os do Olimpio, as mais longas viagens não são para nós senão viagens de recreio, onde o relâmpago submetido nos permite conversar em voz baixa com nossos vizinhos, os antípodas, num mundo, enfim, que hoje rolamos entre as mãos como um brinquedo. É então que, enquanto a Terra perde seu esplendor primitivo deixando-se melhor conhecer, e recuando cada vez mais seu horizonte perante nossos olhos, o mundo sideral desenrola em gigantescas proporções sua incomensurável extensão e cresce, à medida que conhecemos melhor a exiguidade de nosso globo. É então que, enquanto o microscópio nos ensinava que a vida transborda por todo lado em nossa morada e que a Terra é demasiado estreita para contê-la, o telescópio nos abre no céu novas regiões onde esta vida não é mais limitada como cá embaixo, onde ela se propaga em planícies férteis e verdadeiramente dignas dos obséquios da Natureza. É então que as descobertas microscópicas vêm para anunciar que o poder criador se deu ao trabalho de nos fazer conhecer a menor parte dos seres existentes, nos revelando que a vida invisível é infinitamente mais extensa sobre os continentes e nas águas que a vida aparente, e que, apenas no nosso mundo, a soma dos seres percebidos e suscetíveis de serem estudados com o auxílio de nossos sentidos não é comparável à soma dos seres que estão além dos nossos meios de percepção.
A geografia das plantas e dos animais nos mostra a universal difusão da vida na superfície do globo; cada região nos abre um campo de uma nova riqueza, cada região desenrola sob nossos olhos uma nova população. Se nos erguemos dos mais profundos vales aos cumes das mais altas montanhas, as espécies de vegetais e de animais se sucedem, definidas e revestidas de caracteres especiais, segundo as altitudes, e subindo até os últimos limites onde as funções da vida ainda podem operar. Se se dirige do equador aos polos, vemos a esfera da vida se estender e se diversificar desde as formas gigantescas dos trópicos até o mundo dos infinitamente pequenos, que habitam as latitudes extremas. "Perto dos polos", diz Ehrenberg, um dos mais laboriosos naturalistas, "onde os maiores organismos não poderiam existir, reina ainda uma vida infinitamente pequena, quase invisível, mas incessante; as formas microscópicas recolhidas nos mares do polo austral, durante as viagens de James Ross, oferecem uma riqueza toda especial de organismos que eram até então desconhecidos, e que são, muitas vezes, de uma elegância admirável; nos resíduos dos gelos derretidos que flutuam perto de 78 graus de latitude, encontrou-se mais de cinquenta espécies de poligástricos silicosos, e coscinodiscos cujos ovários ainda verdes provam que viveram e lutaram com sucesso contra os rigores de um frio levado ao extremo; a sonda capturou, no golfo do Erebo, de 403 a 526 metros de profundidade, sessenta e oito espécies de poligástricos silicosos e de phytolitharia."
Nem a diversidade dos climas, nem a extensão das distâncias, nem a altura, nem a profundidade, puseram obstáculo à difusão dos seres vivos; eles invadiram as regiões mais ocultas, no alto, embaixo, por toda parte; cobriram a Terra com uma rede de existências. A economia do globo está disposta para isso. As plantas confiam aos ventos seus leves grãos e vão renascer a distâncias imensas; os animais emigram em tropas ou penetram individualmente regiões que parecem impenetráveis. Já observamos, os lagos subterrâneos, aos quais as águas de chuva parecem ser as únicas capazes de descer, alimentando não somente os infusórios e os animálculos que nascem por todo canto, mas ainda grandes espécies de peixes e aves aquáticas, como o testemunham os palmípedes da Carniole. As cavernas naturais, na aparência completamente fechadas, dão acesso às espécies vivas, as quais se multiplicam lá e propagam uma vida subterrânea especial. As geleiras dos Alpes alimentam poduromorfos. As neves polares recebem chionoea araneoides. A 4.600 metros acima do nível do mar, os Andes tropicais estão enriquecidos com belos fanerógamos. A vida é variável ao infinito e se manifesta por todos os lugares onde estão reunidas as condições de sua existência. Nossas classificações artificiais não bastam para compreender a extensão das espécies vivas. A vida brinca com a substância e a forma, e parece desafiar todas as impossibilidades. A luz, o calor, a eletricidade, criam-lhe mil mundos, abrem mil caminhos para sua extensão. A água fervente e o gelo não são um obstáculo insuperável. Vibriões secos sobre os tetos, expostos ao sol forte do verão e cobertos de gelo no inverno, renascem após anos de morte aparente, se as condições de sua existência se encontram momentaneamente realizadas no ponto imperceptível onde jaziam. O átomo de poeira que se equilibra num raio de sol, e que um turbilhão arrebata pelos ares, é todo um pequeno mundo povoado por uma multidão de seres agentes. A vida está por todos os lugares, encontra-se do equador aos polos, diversa, transformada, etapa por etapa. Não há provavelmente um só lugar do globo onde ela não tenha penetrado algum dia, e detendo-nos mesmo no espetáculo atual da Terra, considerando apenas a época determinada na qual observamos, época que só representa um segundo insensível na insondável duração das eras geológicas, vemos essa maravilhosa força de vida por todos os lugares em atividade, por todos os lugares em movimento, por todos os lugares em vias de criação. Analisemos o sangue dos menores animais, e ali encontraremos animálculos; ergamo-nos nos ares e nas nuvens de poeira que muitas vezes perturbam a transparência, e encontraremos uma infinidade de infusórios poligástricos de carapaça silicosa.
Malgrado as sábias e perseverantes pesquisas dos fisiólogos de hoje em dia, o antigo problema da geração espontânea não foi ainda resolvido. Mas se a heterogeneidade ainda está no berço, os trabalhos que a fizeram nascer e as discussões que ela encetou não aumentaram especialmente o campo de nossos conceitos sobre a essência e a propagação da vida. Sabemos agora o quanto é fecundo o seio dessa bela Natureza, sempre na seiva de sua virilidade sem idade, sempre no esplendor de sua força e de sua juventude. Os mistérios íntimos da geração se desvelam, e nosso século analisa os recursos ocultos da vida embriogênica e seu funcionamento, segundo os indivíduos, segundo os sexos, segundo as famílias e segundo as espécies, e se ainda não conhecemos, começamos a conhecer, e compreendemos que há no embrião e no animal microscópico um infinito de vida, força inicial que nasce segundo o concurso de alguns elementos, e que se desenvolve segundo o impulso de sua própria essência, secundada pelas influências saídas do mundo exterior.
Camille Flammarion
Extraído do livro "A Pluralidade dos Mundos Habitados", de Camille Flammarion.
Sobre o autor:
Nicolas Camille Flammarion, mais conhecido como Camille Flammarion (Montigny-le-Roi, 26 de fevereiro de 1842 — Juvisy-sur-Orge, 3 de junho de 1925), foi um astrônomo, pesquisador psíquico e divulgador científico francês. Importante pesquisador e popularizador da astronomia, recebeu notórios prêmios científicos e foi homenageado com a nomenclatura oficial de alguns corpos celestes. Sua carreira na pesquisa e popularização de fenômenos paranormais também é bastante notória.
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