segunda-feira, 29 de abril de 2013

Chico Xavier na Revista Época

Chico Xavier - O Senhor dos Espíritos


O mineiro que dizia se comunicar com os mortos é o único brasileiro que se tornou figura central de uma crença religiosa

Enquanto sua mão escrevia um dos poemas de seu livro de estreia, Parnaso de Além-Túmulo, publicado em 1932, Chico Xavier dizia que começou a sentir uma forte coceira no olho esquerdo - "como se fossem grãos de areia", descreveria mais tarde. Esfregava a vista, mas não adiantava. Ele mal conseguia distinguir os versos, ainda frescos, que estariam sendo ditados pelo espírito de Casimiro de Abreu. Eram os primeiros sintomas da catarata, ainda sem cura pela cirurgia. Até o fim de seus dias, Chico usaria diariamente um colírio à base de cortisona. O olho direito sofria de um estrabismo divergente pronunciado. Ao longo das décadas, Chico Xavier mudou bastante de aparência. Assumiu os cabelos crespos de sua origem mulata, ficou calvo, usou peruca, adotou boinas, foi obeso, definhou com a pele grudada nos ossos. Mas seus olhos, esbranquiçados e quase sem função, permaneceram como marca registrada.

Mesmo com a visão diminuída pelo cristalino escurecido, Chico dizia ver coisas que as pessoas comuns não conseguem. Dizia conversar com os mortos. Várias religiões falam na vida após a morte. Mas somente o espiritismo se propõe a fazer a ponte com o além. Chico foi o único brasileiro a se tornar o personagem central de uma crença. Os espíritas o consideram tão importante quanto o fundador da religião, o pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail, conhecido como Allan Kardec. Kardec não dizia falar com os espíritos. Ele transcreveu e sistematizou mensagens que teriam sido recebidas por outros médiuns. O resultado está em O Livro dos Espíritos, a base da doutrina, publicado em 1857. Na votação para o Maior Brasileiro da História realizada por ÉPOCA na internet, Chico Xavier obteve 9.966 votos, ou 36% do total. Ficou em primeiro lugar. Depois do livro de Kardec, as obras de Chico são as mais importantes para o espiritismo. As mensagens que teriam sido recebidas por ele foram publicadas em 409 obras, com tiragem de mais de 25 milhões de exemplares. O único autor nacional a vender mais no Brasil é Paulo Coelho. O espírito Emmanuel, tido como seu principal mentor, teria estabelecido a missão de Chico Xavier: escrever livros, formar leitores e espalhar os fundamentos da doutrina. Nas palavras de Emmanuel, "o livro é a chuva que fertiliza lavouras imensas, alcançando milhares de almas".

Francisco de Paula Cândido, chamado assim em homenagem a São Francisco de Paula, nasceu em 1910 em Pedro Leopoldo, a 35 quilômetros de Belo Horizonte, Minas Gerais. Filho de pais analfabetos, foi considerado louco por dizer na sala de aula textos supostamente soprados por seres de outro mundo. Em certa ocasião, foi desafiado a escrever na lousa uma frase dita pelos espíritos a partir de uma palavra: areia. Os colegas estavam às gargalhadas quando escreveu: "Meus filhos, ninguém escarneça da criação. O grão de areia é quase nada, mas parece uma estrela pequenina refletindo o sol de Deus".

Para espantar o diabo que, diziam, se apossava de seu corpo, ele afirmava que chegou a ter de carregar uma pedra de 15 quilos na cabeça e rezar mil vezes a ave-maria, penitências impostas pelo pároco local. O pai teria, segundo relatos, pensado muitas vezes em interná-lo no hospício de Barbacena. A mãe morreu quando ele tinha 5 anos, e Chico foi criado pela madrinha, Maria Rita, que, segundo relatos, costumava surrá-lo com vara de marmelo e enterrar garfos em sua barriga. Aos 17 anos, ele diz ter começado a colocar no papel as mensagens dos mortos. Para os habitantes da pequena cidade, aquele rapaz tinha um comportamento bastante estranho. Só gostava de rezar, não ligava para futebol, não saía com meninas. Tornou-se espírita e adotou o sobrenome Xavier, do pai, com o qual não havia sido batizado.

Um dia - segundo sua biografia, As Vidas de Chico Xavier, que já vendeu mais de 300 mil exemplares - um amigo de seu pai o convidou para dar uma volta. Sem que Chico Xavier percebesse, foram a um bordel. Muitas prostitutas participavam então de programas de caridade organizados pelo jovem médium. Imediatamente, diz a biografia, todas reconheceram Chico e se puseram a rezar. O prostíbulo se transformou em um centro espírita improvisado. Chico Xavier teria mantido o celibato por toda a vida. Certa vez, quando tinha 32 anos, foi visto de braços dados com uma mulher. Era, diz sua biografia, uma de suas irmãs. "Devo me dedicar à família espírita, à família universal. Não posso ficar preso a uma mulher", costumava dizer.



A linha que ele imprimiu à religião espírita, aproximando-a do catolicismo, também favoreceu o aumento do número de adeptos. "Chico Xavier popularizou, por meio de seus livros, a ideia da purificação da alma pelo sofrimento em sucessivas reencarnações, dentro dos preceitos do cristianismo", diz o jornalista Marcelo Souto Maior, autor da biografia As Vidas de Chico Xavier. "Ele construiu um modelo próprio de espiritismo, um modelo católico, baseado na abnegação, no voto de pobreza e nas atividades filantrópicas", afirma a antropóloga Sandra Jacqueline Stoll, da Universidade Federal do Paraná, autora de uma tese de doutorado sobre Chico Xavier, publicada em livro com o título Espiritismo à Brasileira. É fácil compreender a assimilação desse modelo por uma sociedade em que 74% das pessoas se declaram católicas. Para facilitar, o espiritismo é um raro tipo de crença religiosa que não exige exclusividade. Pode ser sobreposta a outra. Alguém pode se considerar a um só tempo espírita e católico.

Marcelo Souto Maior diz também que a popularidade do religioso se deve a uma busca de respostas da sociedade moderna. "Chico Xavier mostrou que é possível viver sem as necessidades que inventamos. Isso fez com que as classes urbanas, individualistas e consumistas, repensassem seu papel. Ele indicou um novo caminho. Para muita gente, deu outro sentido à vida", diz.

As peregrinações até o centro espírita de Uberaba duraram até a morte do religioso. Chico Xavier estava bastante debilitado nos últimos anos de vida. Sofria de angina, uma deficiência de oxigenação no coração, e tomava diariamente um coquetel de vasodilatadores e analgésicos. Quase não conseguia andar - tinha uma campainha ao lado da cama para casos de emergência - e precisava da ajuda de seu enfermeiro, Sidnei, para atividades corriqueiras, como fazer a barba. Devido à falta de visão, ele não pôde assistir à final da Copa do Mundo de 2002, na manhã de 30 de junho. Mesmo assim, quis saber o resultado. Ficou contente ao saber da vitória brasileira. Naquela mesma noite, aos 92 anos, Chico Xavier morreu.

Desde a morte de Chico Xavier, surgiram muitas mensagens atribuídas a ele. Nenhuma foi confirmada. Ele teria deixado um código para identificar a veracidade de uma possível comunicação do além com três pessoas de confiança: seu filho adotivo, a amiga Kátia Maria e o médico e amigo Eurípedes Tahan Vieira. Uma das supostas mensagens de Chico Xavier teria sido recebida por Carlos Bacceli, médium de Uberaba. O espírito do médico Inácio Ferreira, ex-diretor clínico do hospital psiquiátrico de Uberaba, teria revelado a ele que Chico Xavier seria a reencarnação do próprio Allan Kardec, vindo ao mundo para pôr em prática a religião teorizada na vida anterior. A maioria dos espíritas refuta essa teoria, principalmente pela diferença de personalidades. Seria, no entanto, um desfecho surpreendente para a trajetória de um personagem indiscutivelmente fascinante - acredite-se ou não em sua faculdade de falar com o além.


Ivan Padilla
Trechos e imagens extraídos da reportagem da Revista Época

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