terça-feira, 27 de outubro de 2015

A recompensa da Virtude


Acima de todas as crenças a respeito do futuro, a evolução do Espírito permanece como o único processo que se pode harmonizar com as descobertas da Ciência, sobre a evolução dos seres e das formas. Por ela reconhecemos o futuro humano como troféu de esforços repetitivos, por meio de incontáveis experiências da vida presente, a se aglutinarem na memória profunda do Espírito ao longo de suas múltiplas vidas. A constatação dessa realidade, universalizada nas questões 166 a 170 de O Livro dos Espíritos(LE), foi proposta antes de forma obscura e carregada de alegorias por vários sistemas religiosos. Também no registro de vários filósofos antigos e modernos podemos verificar a necessidade do progresso da alma, o que caracteriza a lei da evolução como uma das mais elementares funções do Universo. Tais constatações demonstram o caráter universal do Espiritismo. No capítulo 17 de O Evangelho segundo o Espiritismo (ESE), Allan Kardec reinstituiu o justo valor dos versículos 46 a 48 do quinto capítulo do Evangelho de Mateus quando Jesus afirma em síntese: “Sede, pois, vós outros, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celestial”. Como tais palavras fariam sentido diante da recompensa fácil do paraíso, proposta por interpretações literais e dogmáticas do Cristianismo? A chave trazida pelo Consolador iria explicar formidavelmente esse mandamento, aparentemente redundante, que o evangelista registra como do próprio Cristo.

Como dissemos, alguns filósofos antes de Kardec sentiram o progresso humano como uma necessidade. Um deles foi o filósofo inglês David Hume1 (1711-1776) que em seu ensaio O Estoico (1752)1 descreve estágios para o progresso do homem, desde sua natureza primitiva até o último nível que ele chama “homem de virtude” ou “verdadeiro sábio”. Nosso objetivo aqui é traçar um paralelo entre o que escreve Hume naquele texto e as conclusões de Kardec e dos Espíritos no capítulo 17 do ESE. Antes, porém, façamos uma breve introdução a Hume. Ele foi um dos principais filósofos da escola conhecida como empirismo. Segundo ela, apenas da experiência poderia derivar nosso conhecimento sobre a existência das coisas externas. Junto com George Berkeley (1695-1753) e John Locke (1632-1704), Hume pode ser considerado um dos mais influentes pensadores da filosofia ocidental. Não é nosso propósito aqui fazer uma análise profunda de O Estoico. Pretendemos apenas analisar algumas passagens e compará-las a noções de progresso e de evolução espiritual que estabelecem a base para a lei moral como uma justiça natural que governa todos os seres e coisas. No que segue, o que está em destaque são trechos de O Estoico.

O objetivo do autor é descrever o esforço que o homem deve fazer para o seu progresso moral, através de vários estágios que Hume justifica com base nos costumes adquiridos com a civilização. Segundo Hume, Deus distinguiu os homens dos outros animais por ter dotado aquele de um “sublime espírito celeste, conferindo-lhe certa afinidade com os seres superiores”. Para Hume o progresso do homem pode ser descrito na forma de três estágios fundamentais: o do homem incivilizado que usa “paus e pedras como defesa contra as rapaces feras do deserto”; o do homem civilizado que se tornou habilidoso no trato de ferramentas, no desenvolvimento das artes e das ciências graças à Natureza e, finalmente, o homem virtuoso que Hume também chama de verdadeiro filósofo, que “comanda seus apetites, subjuga suas paixões e a quem a razão ensinou a atribuir um justo valor a todo objeto de desejo”. Embora sem as noções de progresso espiritual e evolução dos seres pela reencarnação (questão 168 do LE), para Hume também é impossível retroceder:

Mas, ao mesmo tempo que ambiciosamente aspiras ao aperfeiçoamento de tuas faculdades e poderes corpóreos, serias capaz de mesquinhamente desprezar o teu espírito, e com despropositada preguiça deixá-lo no mesmo estado rude e inculto com que veio das mãos da Natureza?

A base do progresso moral é a necessidade de se cultuar as qualidades de espírito que não devem ser desprezadas em detrimento das capacidades intelectuais. Hume reconhece assim a necessidade do progresso não só intelectual, mas também moral, observação que tomaria corpo na questão 780 de O Livro dos Espíritos:

O progresso moral acompanha sempre o progresso intelectual? “Decorre deste, mas nem sempre o segue imediatamente”.

Essa observação se tornou a base para se compreender o progresso humano em todos os sentidos. A necessidade do progresso moral é reafirmada várias vezes ao longo do LE como na questão 793, quando os Espíritos afirmam que a civilização completa é reconhecida pelo seu desenvolvimento moral.

Para o filósofo, reconhece-se o verdadeiro homem civilizado no seu esforço em domar suas paixões:

E que o mesmo esforço pode tornar o cultivo de nosso espírito, a moderação de nossas paixões e o esclarecimento da razão uma ocupação agradável, quando a cada dia tomamos consciência de nosso progresso e vemos nossos traços e atitudes interiores cada vez brilhando mais com novos encantos?

Esse esforço é o verdadeiro prazer, a fonte de felicidade. No magistral “O Homem de Bem”, capítulo XVII do ESE, Kardec afirmaria sobre o verdadeiro homem de bem:

Encontra satisfação nos benefícios que espalha, nos serviços que presta, no fazer ditosos os outros, nas lágrimas que enxuga, nas consolações que prodigaliza aos aflitos. Seu primeiro impulso é para pensar nos outros, antes de pensar em si, é para cuidar dos interesses dos outros antes de seu próprio interesse. [...]

No entender de Hume, o apogeu das conquistas e de todo prazer do “homem virtuoso” ou “verdadeiro sábio” está descrito nesta passagem que transcrevemos por sua beleza e inspiração:

Purificai mais ainda esta generosa paixão, e admirareis mais ainda suas refulgentes glórias. Que encantos encontramos na harmonia dos espíritos, e numa amizade baseada na mútua estima e gratidão! Que satisfação em socorrer os aflitos, em reconfortar os infelizes, em levantar os caídos, e em deter a carreira da cruel fortuna, ou do homem ainda mais cruel, em seus insultos aos bons e aos virtuosos! Mas que alegria mais sublime é possível, nas vitórias sobre o vício e sobre a miséria, do que quando pelo virtuoso exemplo ou a sábia exortação, nossos semelhantes são ensinados a dominar suas paixões, a renunciar a seus vícios, a subjugar seus piores inimigos, que habitam dentro de seu próprio peito?

Ao se refletir na história de um Francisco de Assis, de um Francisco Cândido Xavier ou Madre Teresa de Calcutá, percebemos que as diferenças de tempo, espaço ou cultura pouco efeito têm sobre a verdadeira alma virtuosa. Pois em todos eles manifestam-se os mesmos pendores, as mesmas inclinações, a mesma bondade, a mesma justiça e humildade unidas em amálgama de perfeita harmonia. São exemplos de que tal estado é possível. Se vislumbramos pouco desse estado na imensa maioria, certamente o veremos muito mais no futuro, bastando que comecemos a cultivar em nós essas grandes virtudes. “No verdadeiro sábio e patriota se reúne tudo o que pode enobrecer a natureza humana, elevando o homem mortal a uma certa semelhança com a divindade” – afirmaria Hume que também define neste ponto a “beleza moral”:

Se a contemplação da beleza, mesmo inanimada, é tão deliciosa, se ela entusiasma os sentidos, mesmo quando a bela forma nos é estranha, quais não devem ser os efeitos da beleza moral? E que influência não deve ela ter quando embeleza nosso próprio espírito, como resultado de nossa própria reflexão e de nosso próprio esforço?

“Mas qual será a recompensa da virtude?”, perguntaria Hume, pois, afinal a própria Natureza prevê recompensa para tamanhos sacrifícios. Estamos informados de que a suprema felicidade é o destino de todos os seres. Todos rumam para o mesmo fim que é o do “Espírito bem-aventurado; puro Espírito”, segundo a questão 170 do LE, já que o Espírito é imortal. Sem o conhecimento do destino dos seres, o homem tateia nas trevas de sua própria escuridão, impulsionado por uma lei maior que o faz caminhar sem retroceder, embora ele possa, se quiser, estacionar. Ainda que sem o conhecimento que o Espiritismo traria algumas décadas mais tarde, escreveria Hume:

A glória é o troféu da virtude, a doce recompensa de honrosos esforços, a triunfante coroa que vai cobrir a cabeça pensativa do patriota desinteressado ou a fronte empoeirada do guerreiro vitorioso. Enaltecido por prêmio tão sublime, o homem virtuoso contempla com desprezo todas as ilusões do prazer e todas as ameaças do perigo.

“Sede, pois, vós outros, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celestial”– tal é o supremo objetivo, a suprema razão que também é uma beleza suprema a adornar o Espírito. Assim ensinou Jesus.


Ademir Xavier


Referências

1 Obra citada. Parte I, Ensaio XVI, Ensaios morais, políticos e literários. No Brasil, o livro pode ser encontrado na coleção “Os Pensadores” da Ed. Abril (2000), trad. João Paulo Gomes Monteiro e Armando Mora D’Oliveira.

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