quarta-feira, 27 de outubro de 2010

“Servir é uma Religião – A Vida em Família”


“Servir é uma religião”. Mesmo durante o período em que ainda se buscava, Gandhi não vivia unicamente para si próprio e seu círculo familiar (ao contrário de Tolstoi, que conta que, antes de sua conversão, sua filosofia de existência consistia em desejar o melhor para si e para sua família). A busca interior muito cedo o agita.

Se partiu para a África do Sul, confessa que foi para fugir das intrigas mesquinhas do Kathiyavar (principado na costa noroeste da Índia) e ganhar a vida. Um objetivo que não apagava sua orientação profunda: “Eu me vi em busca de Deus e lutando para a realização do meu ser”. Mas chegar a Deus, segundo ele, só era possível prestando serviço aos outros. Um pouco mais adiante, num capítulo da autobiografia intitulado “A vontade de servir”: “Eu aspirava a uma tarefa humanitária de ordem permanente”. Não sendo suficiente a obra pública, ele trabalha num pequeno hospital, cuidando dos trabalhadores sob contrato, isto é, dos indianos mais pobres. O que representa duas horas todas as manhãs, e esse trabalho lhe dá “um pouco de paz”.

Cuidar, sobretudo, era isso o importante. Dois outros filhos seus nasceram na África do Sul, em 1897 e 1900 (data importante, pois Gandhi reconhece aí o momento em que começou a pensar em fazer o voto de castidade). Durante os primeiros anos, ele próprio cuidou deles, estudando num livrinho as instruções para o parto (aliás, foi ele que assistiu o nascimento do seu último filho, pois a parteira contratada não chegou a tempo).

E renunciar, ir em direção ao menos.
Ele assinala que sua nova situação, a bela casa em Durban, mobiliada com “todo cuidado”, não consegue exercer domínio sobre ele. Em realidade, tem necessidade de menos, de viver com pouco. Nesse ambiente abastado, que imaginou à altura de sua vida profissional, não se sente à vontade. Logo começará a fazer economias, a experimentar, como em Londres, e essas experiências têm a vantagem de diverti-lo e de fazer rir os amigos: por isso o colarinho mal-engomado (ele próprio decidira fazer essa operação) cujas placas de amido caem durante uma sessão do tribunal, por isso os cabelos que ele tosquia, porque um barbeiro inglês desdenhoso recusou-se a cortá-los, e que se dispõem em camadas estranhas. “Meus amigos do tribunal quase morreram de rir”. Não se tratava apenas de excentricidades, de caprichos que às vezes perturbarão seus amigos, mas de uma necessidade profunda, daquela “paixão pela autarcia e pela simplicidade” que acaba, ele confessa, por tomar formas extremas. Por ora, ele é barbeiro, lavadeiro, enfermeiro, farmacêutico, educador, professor (tendo recusado para os filhos, apesar dos protestos da mãe, um favor que é negado a outros, a saber, o ingresso numa escola européia, ele próprio os instrui enquanto caminha até seu escritório em Johanesburg acompanhado dos garotos, num trajeto de dezesseis quilômetros, ida e volta). De boa ou de má vontade, a família partilha suas experiências e aplica as conclusões que ele tira (o que alguns críticos lhe reprovarão severamente).

Quanto à mulher e aos filhos, que ele formava para dedicarem a vida a servir, a “compreender que a idéia de servir comporta em si a recompensa”, como poderiam não seguir seu exemplo? Todavia ele pressente que Katursbai não o entenderá desse modo. Os filhos aceitam com alegria, como ele esperava. Mas Katursbai mostra uma oposição feroz, despejando uma torrente de reprovações e lágrimas: “Seus serviços não são também um pouco os meus ? Tenho pensado; noite e dia tenho sido sua escrava... Você me impôs todo tipo de coisas e de pessoas...” Gandhi reconhece a justeza dessas objeções. Em Durban, tinha a mesa aberta, seus empregados do escritório estavam constantemente em sua casa, cristãos, hindus ou outros, tratados como membros da família, sem contar os convidados, indianos e europeus, que se sucediam, e essa vida em comunidade geralmente pesava Kasturbai. Uma grave crise sobreveio no dia em que, tendo convidado um cristão nascido de pais intocáveis, Gandhi quis limpar seu quarto e esvaziar seu penico, o que tinham o hábito de fazer para os hóspedes, ele ou Katursbai. “Ela não podia me ver esvaziar aquele vaso, como tampouco queria fazê-lo ela própria.” Enfim, Katursbai chorava e fulminava, quando seu esposo queria que ela “cumprisse alegremente aquela tarefa”. Segue-se uma violenta discussão; Gandhi, cego de cólera, arrasta “a pobre mulher sem defesa” até a porta de entrada como para lançá-la na rua. A crítica reprovou muito a Gandhi esse ato de crueldade (mas é difícil insistir demais quando o interessado é o primeiro a acusar-se).

O incidente ocorreu em 1899, esclarece Gandhi em sua autobiografia, antes que ele pronunciasse o voto de castidade; ele achava então que “a mulher era apenas um objeto de desejo para o marido, que ela nascera para obedecer fielmente o esposo...”. Mas hoje, ele acrescenta, “não sou mais o educador de minha mulher. Katursbai é livre, se quiser, para ser tão desagradável em relação a mim quanto fui outrora em relação a ela. Somos amigos experimentados, um não considerando mais o outro como objeto do seu desejo”, e o episódio acaba por exaltar os méritos da castidade. A conclusão é que a existência do casal era enfim “inteiramente de contentamento, de felicidade e de progresso”. Ao ler essas linhas (por que não acreditar nelas?), pode-se compreender por que Kasturbai não levantou nenhuma objeção quando Gandhi, em 1906, pediu-lhe a concordância para levar uma vida casta.


Christine Jordis

Biografia de Gandhi, de Christine Jordis, trecho do capítulo “Transformação de si”.

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